RIO — O distanciamento social causado pela Covid-19 desde março do ano passado intensificou os contatos virtuais e acabou tendo um “efeito colateral” fora da esfera da saúde pública. Em 2020 e 2021, os casos de estelionato explodiram no Rio. Os golpistas aproveitam o uso das plataformas digitais, contato prioritariamente pelo telefone com centrais bancárias e o uso cada vez mais frequente de aplicativos de entrega para fazer vítimas. Mas nem só dos esquemas tecnológicos vivem os estelionatários: ainda há quem caia em velhas armadilhas, como o antiquíssimo golpe do bilhete premiado.
Em 2019, foram registrados no estado do Rio 22.633 casos de estelionato de janeiro a julho. Em 2020, o número passou para 28.017 no mesmo período; e, em 2021, saltou para 34.995 registros do crime, segundo números do Instituto de Segurança Pública. O aumento de 2019 para 2021 foi de 56%.
— Com as pessoas ficando mais em casa, estão mais suscetíveis ao uso de meios virtuais. Vão menos às agências bancárias, a empresas. Então eles (criminosos) conseguem mascarar melhor suas reais intenções — analisa o delegado Bruno Gilaberte, titular da 5ª DP (Mem de Sá) e responsável por investigar e prender uma quadrilha de estelionatários que tinha como principais alvos servidores públicos.
E além da comunicação virtual ou remota, os criminosos também se valem do contato pessoal com as vítimas, como taxistas que aplicam golpes em passageiros ou ainda da crise financeira para fisgar quem busca aumentar sua renda com supostos investimentos que parecem tentadores. Basta verem uma brecha para os bandidos agirem.
O GLOBO listou golpes aplicados pelos criminosos no Rio e traz histórias de pessoas que foram vítimas dessas quadrilhas, como o servidor público W., de 59 anos, que teve um prejuízo estimado em R$ 200 mil ao ser enganado pelos golpistas presos pelo delegado Bruno Gilaberte. O homem adquiriu empréstimo consignado e repassou o dinheiro a uma empresa que prometia investir a quantia, trazer lucros à vítima e ainda pagar o valor devido ao banco.
— Quando a esmola é muita, o santo tem que desconfiar — ensina o servidor.
Clonagem de WhatsApp
O golpe da clonagemdo WhatsApp Foto: André Mello – Editoria de Arte
Acreditando estar realmente falando com o filho, ele fez as transferências. Na semana anterior, a vítima tinha ficado sabendo de algumas mudanças na rotina do rapaz, que não mora com ele, como entrada em um novo emprego e uma expectativa de se mudar. As novidades das quais teve notícia fizeram o advogado acreditar que o filho realmente necessitava do suporte financeiro.
O primeiro contato do golpista foi numa quarta-feira. Na sexta, com o quarto pedido de depósito, N. foi mais insistente em alguns questionamentos dos quais o golpista ficara se esquivando. Sem conseguir contato por ligação naquele número, decidiu ligar para o telefone do filho mais novo. A chamada caiu e o primogênito fez contato pelo seu próprio celular, ainda em funcionamento. Ao perceber que o filho ligava do antigo telefone, a vítima já notou algo estranho.
— Quando atendi, já comecei a questionar sobre o porquê de ele estar pedindo tanto dinheiro, querendo saber o motivo. Jamais vou esquecer a resposta dele, na maior calma. Ele falou: Que dinheiro, pai? Nesse momento, caiu a ficha, fiquei gelado e o mundo parou de girar. Fiquei em silêncio um minuto e meio. Depois, durante outros cinco minutos, chorei sem parar.
O que aconteceu com o advogado e jornalista ficou popularmente conhecido como “golpe no WhatsApp”. Nele, uma pessoa tem o aplicativo de mensagens ou lista de telefone clonados. Para isso, em geral, os golpistas conseguem acesso a um código que é enviado para o celular da vítima por mensagem de texto, possibilitando a clonagem do WhatsApp ou da lista. Os criminosos fazem contato alegando ser de alguma empresa e solicitam o código recebido.
Se a vítima não tiver habilitado a autenticação em duas etapas do WhatsApp, a clonagem é possível. Em alguns casos, os golpistas conseguem acesso à própria conta da pessoa, com o número usado por ela. Em outras, tem acesso à lista de telefones. Nos dois casos, o passo seguinte é fazer contato com parentes e amigos para pedir depósito de quantias de dinheiro.
Quando conseguem apenas clonar a lista de telefones, os golpistas se passam pela pessoa da qual roubaram os contatos, alegando ter trocado de número de celular. Para dar mais veracidade, eles colocam foto da própria pessoa no perfil do WhatsApp.
O advogado e jornalista vítima do “golpe do WhatsApp” acredita que plataformas digitais e bancos deveriam agir de forma mais eficaz para contribuir para redução desse tipo de fraude.
— A precaução individual é importante e não resolverá a pandemia de golpes virtuais. As plataformas digitais e os bancos precisam assumir responsabilidades. Não basta alertar. Precisam investir em tecnologia para detectar movimentações atípicas e agir numa frente institucional conjunta. O que fazem hoje é pouco, até para os seus acionistas — critica.
Perfis fake nas redes
Perfis falsos nas redes sociais Foto: André Mello – Editoria de Arte
Em seu perfil no Instagram, o publicitário X. recebeu uma oferta tentadora: bastava passar seu nome e telefone para participar do sorteio de três diárias do hotel fazenda Gamela, em Cantagalo, no interior do Rio. Após enviar os dados, a vítima recebeu uma mensagem com um código, que forneceu aos golpistas após nova solicitação. O homem não percebeu, mas tinha acabado de passar aos criminosos os números necessários para que eles clonassem seu WhatsApp.
Acessando o aplicativo de mensagens, os bandidos solicitaram depósitos dos contatos do publicitário. A irmã do dono da conta fez dois PIX para os golpistas, de R$ 350 e R$ 200.
— Acreditei que aquele instagram era mesmo do hotel e fiquei interessado na promoção, que era muito boa. Não me dei conta de que estava sendo vítima de um golpe. A gente sente até vergonha de ter sido passado para trás assim — afirma X, que prefere não se identificar.
Nesse tipo de fraude, os golpistas usam praticamente o mesmo nome de usuário do perfil verdadeiro, acrescentando em geral apenas uma letra, e usam foto igual à da página oficinal. Para fisgar as vítimas, criam falsas promoções. O hotel fazenda Gamela já fez três postagens, desde o início deste ano, alertando os hóspedes sobre os perfis falsos com o nome do estabelecimento. “Muita atenção. O hotel fazenda Gamela possui apenas esse perfil, com mais de 68 mil seguidores no Instagram”, escreveu o estabelecimento. Nesse tipo de golpe, há ainda registros de pessoas que acabam fechando reservas de hospedagem com os perfis fake.
Além de hotéis, o mesmo vem sendo feito com redes sociais de lojas. Muitas vezes, os criminosos fazem contato com pessoas que fazem reclamações em comentários de postagens desses locais, queixando-se de prazos de entrega, por exemplo. Pelo perfil falso, os golpistas também solicitam dados da vítima com o objetivo de conseguir o código do WhatsApp.
Bilhete premiado
O golpe do bilhete premiado Foto: André Mello – Editoria de Arte
Tudo não passava de um golpe. Em um universo de novas artimanhas usadas pelos criminosos para enganar as vítimas, algumas antigas ainda são usadas. O golpe do qual B. foi vítima é popularmente conhecido como bilhete premiado.
Nele, um criminoso costuma abordar a vítima, contando uma história em relação a um suposto bilhete premiado e, alegando dificuldades para fazer a retirada de uma quantia milionária à qual teria direito. Nesse golpe, enquanto a pessoa que vira alvo da quadrilha é abordada pelo primeiro integrante, uma terceira pessoa se aproxima, fingindo desconhecer o comparsa que já conversa com a vítima. Essa pessoa se oferece para ajudar, dando veracidade à situação.
A aposentada B. foi levada pelos golpistas a duas agências bancárias para fazer a retirada de de R$ 5 mil em cada uma delas. Após a entrega da quantia, as criminosas fugiram. No “golpe do bilhete premiado”, os idosos são os principais alvos dos criminosos.
— Fiquei com pena da primeira moça que me parou na rua e quis ajudar. E quando a segunda mulher parou para conversar conosco, também oferecendo ajuda, acreditei não ser golpe — afirma a aposentada.
O caso foi registrado na 19ª DP (Tijuca), que tenta identificar as duas mulheres que abordaram a idosa.
Reservas com dados falsos
O golpe da reserva com dados falsos Foto: AndréMello – Editoria de Arte
Um grupo de estelionatários preso em janeiro pela 12ª DP (Copacabana) em um imóvel de luxo em São Conrado, na Zona Oeste do Rio, é investigado por suspeita de aplicar esse golpe. Pela reserva da casa onde eles estavam hospedados, foi pago R$ 12,7 mil de diárias. A suspeita é de que o pagamento tenha sido feito de forma fraudulenta, utilizando dados bancários de terceiros.
Nas redes sociais, integrantes do grupo preso em São Conrado postavam fotos em passeios de lancha e de helicóptero. Eles são suspeitos de terem feito as reservas também com os dados falsos.
Entregadores de aplicativos
Golpes cometidos por entregadores de aplicativos Foto: André Mello – Editoria de Arte
Os clientes dos aplicativos relatam dois diferentes tipos de golpes. Em ambos os casos, os entregadores digitam nas máquinas de cartão de crédito e débito valores superiores àqueles que afirmam estar cobrando. As vítimas não notam a fraude e colocam as suas senhas, autorizando a compra.
Em um dos golpes, o entregador afirma que houve problemas com a taxa de entrega, por isso será necessário efetuar o pagamento diretamente a ele. Em outro, comunicam supostos problemas com a entrega em si, também para que o valor total do pedido seja pago a ele.
O aposentado Y., de 67 anos, teve um prejuízo de R$ 5 mil ao cair no golpe. Além de ter passado no cartão de débito valor bem acima do que supostamente deveria ter sido cobrado pelo lanche pedido, o homem que afirmou ser entregador de aplicativo ainda furtou seus dados bancários.
Y. registrou o caso pela internet. Ele relatou ter feito o pedido em um restaurante da região onde mora que custaria R$ 45. Algum tempo após o pedido, recebeu um telefonema de uma pessoa que se diziam trabalhar no estabelecimento, relatando que o entregador tinha sofrido um acidente. Foi solicitado que o aposentado cancelasse o pedido no aplicativo, pois um funcionário do próprio restaurante levaria seu pedido. Para isso, no entanto, ele precisaria pagar o pedido no ato da entrega.
Após o suposto entregador chegar e solicitar o cartão, a vítima percebeu que o visor da máquina estava quebrado. O comprovante também não foi impresso, já que o homem alegou que o envio seria por e-mail. Apenas alguns dias depois, o aposentado constatou que o golpista tinha passado R$5 mil em seu cartão.
Leilões forjados
O golpe do falso leilão de carros Foto: André Mello – Editoria de Arte
— Tentei várias vezes fazer contato com a empresa, mas simplesmente ninguém atendia nem respondia minhas mensagens. A sensação é de completa impotência.
Nesse tipo de golpe, os criminosos simulam leilões de veículos para que as vítimas paguem valores acreditando que estão arrematando carros ou motos.
No site Reclame Aqui, que reúne relatos de consumidores a respeito de marcas ou estabelecimentos, usuários fazem alertas sobre a Begônia Leilões. “Golpistas. Tomem cuidado. Site falso, WhatsAp falso”, escreveu um deles. O outro questiona o fato do nome do leiloeiro que constava no site da empresa não aparecer no site da Junta Comercial.
Central do cartão
O golpe da central do cartão Foto: André Mello – Editoria de Arte
A aposentada J., de 78 anos, foi vítima de uma das quadrilhas. O prejuízo total com o golpe foi de R$ 12 mil. A idosa estava em sua casa, quando recebeu um telefonema de uma pessoa que se apresentou como funcionária de seu banco, pedindo que ela confirmasse a veracidade de duas compras. Como não tinham sido feitas por ela, a vítima rechaçou ambas. A pessoa que estava do outro lado da linha disse que cancelaria a compra, mas pediu que a idosa ligasse para a central de seu cartão.
A vítima seguiu a orientação e entrou em contato com o número que aparecia no verso do seu cartão. Naquilo que parecia uma nova ligação, ela forneceu seus dados bancários e foi informada de que um funcionário do banco passaria em sua residência para buscar seu cartão de crédito. Logo após o contato, um motoboy passou na casa da idosa. Os golpistas fizeram compras e até saques com o cartão da vítima.
Nesse tipo de golpe, ao pedir que a vítima ligue para a central do cartão, os golpistas conseguem bloquear a linha e têm todo o aparato para simular uma nova ligação. A tática dá mais credeibilidade à fraude, já que a pessoa acredita de fato estar ligando para um número que ela própria discou.
— Ela acabou entregando seu cartão ingenuamente. No mesmo dia, começaram a movimentar a conta dela. O prejuízo foi alto, mas ela acabou conseguindo recuperar o valor — explica o advogado Carlos Eduardo Bispo, que representou a aposentada em uma ação judicial contra o banco.
A vítima conseguiu reaver boa parte da quantia perdida após uma audiência com o banco, intermeadiada pela Comissão de Defesa do Consumidor da Alerj. Mas precisou entrar com uma ação judicial para recuperar R$ 2,2 mil que faltavam.
Quadrilhas que aplicam esse tipo de fraude algumas vezes não chegam a fazer a retirada do cartão com motoboys. Pode acontecer de os estelionatários conseguirem que a vítima forneça seus dados bancários pelo telefone, sendo suficiente para usá-los em compras e outros pagamentos.
A delegada Márcia Beck, da 40ª DP (Honório Gurgel), prendeu no mês passado cinco mulheres acusadas de aplicar esse golpe. A polícia ainda apura quantas vítimas o grupo fez, mas estima que sejam milhares porque atingia até moradores de outros estados, como Santa Catarina. A quadrilha tinha como seus principais alvos pessoas idosas. A polícia também apurava a quantia que o grupo movimentava.
Falso sequestro
O golpe do falso sequestro Foto: André Mello – Editoria de Arte
“Minha mãe recebeu uma ligação, às nove da noite, de um sequestrador, dizendo que estava com a minha irmã. Eles colocam aqueles vozes ‘mãe, socorro, pelo amor de Deus’… E a mãe fica desesperada. Minha mãe ficou a noite inteira com eles no telefone. E, de manhã, disseram para ela levar o dinheiro até a (rodovia) Rio-Petrópolis. Ela iria sair para levar”, relatou a atriz, que usou sua rede social para alertar sobre o que tinha acontecido com a mãe.
Corridas de táxi superfaturadas
O golpe da corrida de táxi superfaturada Foto: André Mello – Editoria de Arte
Ela decidiu passar o cartão na maquininha, mas o motorista afirmava que a transação não completava, pois o sistema estaria fora do ar. Cheia de sacolas e vendo a chuva apertar, Laís decidiu dar os R$ 50 para o taxista e afirmou que não precisava de troco.
Apenas dias depois a idosa se deu conta de que tinha sido vítima de um crime. Na sua conta bancária, havia um débito de R$ 3 mil, valor passado pelo taxista na máquina de cartão.
— Eu já estava com minha conta negativa e ficou ainda mais. Foi um susto. Na delegacia (da Gávea) soube que ele (taxista) já tinha lesado várias pessoas e contava com um comparsa.
Taxistas são investigados pela Polícia Civil do Rio por aplicar esse tipo de golpe. Na hora de cobrar o valor da corrida, os motoristas digitam valor bem acima do que deveria ser pago pelo passageiro. Muitas vezes, as maquininhas de cartão estão com o visor quebrado, impedindo que a vítima veja que está sendo enganada.
No início deste mês, um taxista foi indiciado pela 15ª DP (Gávea) por ter passado no cartão de débito de passageiros R$ 3,5 mil por uma corrida de cerca de quatro quilômetros. Nessa modalidade, os criminosos têm como principais vítimas jovens retornando de festas, turistas e idosos.
Investimentos falsos
O golpe do investimento falso Foto: André Mello – Editoria de Arte
A suspeita da polícia é de que muitas das empresas que recebem quantias para investir em criptomoedas, na realidade, não aplicam os valores recebidos. Os clientes até chegam a ser inicialmente pagos, mas com o dinheiro de outros que estão aderindo ao negócio. Em determinado momento diz-se que a pirâmide ” quebra” e a empresa não consegue mais pagar os supostos investidores.
S., morador do bairro Jardim Esperança, em Cabo Frio, é casado e pai de dois filhos e usou para investir na empresa as economias da vida inteira. Outras pessoas de sua família também são clientes da BW.
— Eu tinha R$ 35 mil na poupança. Com o novo rendimento, eu queria comprar um carro. A empresa já era conhecida aqui no bairro há mais de seis meses. Todo mundo investia lá e recebia normalmente. Inicialmente, coloquei R$ 10 mil. No primeiro e no segundo mês, eu recebi certinho, 30% desse valor. Com isso, peguei mais R$ 25 mil que tinha e apliquei. Depois disso, não recebi mais nada — disse, com os olhos cheios d’água.
Assim como o pedreiro S., dezenas de investidores fazem a mesma peregrinação, indo à sede da empresa com frequência para tentar reaver o dinheiro que aplicaram. O GLOBO não conseguiu contato com representantes da Black Warrior, que não tem site oficial, nem página nas redes sociais e não é habilitada na Comissão de Valores Mobiliários (CVM). O jornal também foi ao endereço da firma, mas o local estava fechado.
— Há meses, a gente vai lá (à empresa) para receber. Mas eles dizem que têm muitos clientes para devolver dinheiro. A gente não pensou no risco porque eles estavam pagando certinho. Por isso, não vi tanto problema. Esse dinheiro está me fazendo muita falta agora — disse o pedreiro.
Há duas semanas, a PF prendeu o dono da G.A.S. Consultoria, ex-garçom e ex-pastor Glaidson Acácio dos Santos, por suspeita da prática de pirâmide financeira. Os investigadores acreditam que o ex-garçom não aplicava de fato o dinheiro dos investidores em criptomoeda. No entanto, na investigação, não há informações sobre pessoas que tenham sido lesadas por Glaidson.