‘Eu odeio os homens’: quem são as autoras que dão cara nova e franca ao feminismo francês

Nova geração de feministas francesas assume rejeição a figuras masculinas como forma de combate à violência de gênero estrutural A autora feminista Pauline Harmange, em Lille, na França (9.01.2021). Ela ainda está se adaptando ao sucesso e à repercussão de seu primeiro livro 'Moi les hommes, je les déteste', um dos títulos franceses que sugerem uma abordagem mais franca do sexismo e da violência de gênero Foto: KSENIA KULESH/NYT

O ensaio feminista, que defende a rejeição aos homens como mecanismo legítimo de defesa contra a misoginia generalizada, foi publicado inicialmente em francês pela editora independente Monstrograph. Foram impressas apenas 400 cópias. No dia em que foi lançado em agosto de 2020, no entanto, um funcionário do Ministério Francês para a Igualdade de Gênero, Ralph Zurmély, enviou um e-mail à Monstrograph de sua conta governamental.

O livro era obviamente, escreveu ele, “uma ode à misandria”. Zurmély, que não tinha lido o livro, comparou-o à “incitação ao ódio com base no sexo” e concluiu: “Peço que retire imediatamente este livro de seu catálogo, sujeito a processo legal.”

A autora feminista Pauline Harmange, em Lille, na França (9.01.2021). Ela ainda está se adaptando ao sucesso e à repercussão de seu primeiro livro 'I hate Men', um de uma variedade de títulos franceses que sugerem uma abordagem mais franca do sexismo e da violência de gênero Foto: KSENIA KULESHOVA / NYTA autora feminista Pauline Harmange, em Lille, na França (9.01.2021). Ela ainda está se adaptando ao sucesso e à repercussão de seu primeiro livro ‘I hate Men’, um de uma variedade de títulos franceses que sugerem uma abordagem mais franca do sexismo e da violência de gênero Foto: KSENIA KULESHOVA / NYT

O tiro saiu pela culatra. Logo se tornou público que “Moi les hommes, je les déteste” se tornou uma causa célebre na mídia francesa – e chamou atenção para a misandria, antipatia ou desconfiança em relação aos homens, como um fenômeno social. Como a Monstrograph não conseguiu atender à demanda, uma grande editora francesa, a Seuil, venceu uma guerra legal pelo direito de reimprimir o livro, que vendeu 20 mil exemplares desde então. Os direitos de tradução para 17 idiomas foram vendidos.

Nos Estados Unidos, a HarperCollins lançará “I Hate Men”, traduzido por Natasha Lehrer, em 19 de janeiro. No Brasil, a obra deve ser publicada em 2021 pela Record.

O Ministério Francês para a Igualdade de Gênero, entretanto, esforçou-se para se distanciar da ameaça de Zurmély. Um porta-voz da atual ministra, Élisabeth Moreno, disse que ela “condenou firmemente este ato isolado” e acrescentou que Zurmély estava sendo transferido para um cargo diferente “a seu pedido”.

Para Harmange, que tem apenas 26 anos, toda a experiência foi semelhante a uma chicotada. “É o lançamento da minha carreira, que eu achei ser um sonho quase inacessível”, disse ela durante uma entrevista ao “New York Times” feita por vídeo, em dezembro de 2020, de sua casa em Lille, no norte da França. Ainda assim, com a atenção, veio o assédio nas redes sociais, com insultos diários chegando agora em vários idiomas.

“Há momentos em que digo a mim mesma que não me inscrevi para isso”, disse ela.

“Moi les hommes, je les déteste” começou em 2019 como uma postagem de blog sobre o esgotamento feminista. Harmange havia se formado um ano antes em comunicação e trabalhava como redatora freelance. Seus ensaios pessoais, sobre assuntos que vão de autocuidado a ambientalismo, conquistaram um pequeno, mas constante, número de seguidores, ajudando-a a sobreviver via Tipeee, uma alternativa francesa ao serviço de crowdfunding Patreon.

“Era um insulto que você receberia como feminista”, disse ela. “O que quer que você diga, assim que critica os homens, você é acusado de ser misândrica. Foi quando eu percebi; na verdade, é exatamente isso.”

Alice Coffin, conselheira na cidade de Paris e parte da nova onda de ativistas feministas (31/08/20). Uma seção do livro 'Lesbian Genius', de Alice Coffin, é dedicada a 'guerra dos homens contra as mulheres' Foto: ANDREA MANTOVANI / NYTAlice Coffin, conselheira na cidade de Paris e parte da nova onda de ativistas feministas (31/08/20). Uma seção do livro ‘Lesbian Genius’, de Alice Coffin, é dedicada a ‘guerra dos homens contra as mulheres’ Foto: ANDREA MANTOVANI / NYT

O livro, curto e fluido, é parte de um recente renascimento do sentimento anti-masculino na literatura feminista francesa. Como Harmange, Alice Coffin, vereadora eleita pela cidade de Paris, tocou na misandria em “Le génie lesbien” (Gênio Lésbico, em tradução livre), publicado pela Grasset no final de setembro. Embora o livro seja principalmente uma recontagem de sua experiência como jornalista e ativista lésbica, emparelhado com uma série de entrevistas com jornalistas LGBT+ americanos, uma seção é dedicada à “guerra dos homens” contra as mulheres. Coffin argumenta que a arte feita por homens é “uma extensão de um sistema de dominação” e escreve que ela a evita.

A franqueza do trabalho de Coffin e Harmange tocou um nervo na França. O país tem demorado a reconhecer o movimento #MeToo, em parte por causa de uma divisão geracional entre feministas mais velhas e ativistas mais jovens e enérgicas, que apontam para uma falta de progresso.

“Feministas gastam muito tempo e energia garantindo aos homens que não, nós realmente não os odiamos, que eles são bem-vindos“, disse Harmange. “Não aconteceu muita coisa em troca”.

A desilusão com a política francesa contribuiu para a mudança na geração mais jovem. Embora o presidente francês Emmanuel Macron tenha declarado que a igualdade de gênero seria “a grande causa do meu mandato”, seu governo foi criticado por colocar poucas políticas feministas em prática. No ano passado, Macron nomeou um homem que havia sido acusado de estupro, Gérald Darmanin, como Ministro do Interior.

Em uma entrevista de sua casa em Paris, Coffin disse que os homens “tiveram sua chance” de lutar pela igualdade. “Eles poderiam ter entendido as dicas há muito tempo, mas aparentemente isso não gerou grande entusiasmo”.

Colette Pipon, historiadora que escreveu um livro sobre o surgimento da misandria nas periferias do feminismo francês na década de 1970, descreve-o como uma resposta não violenta ao sexismo e à misoginia, acrescentando que teve valor estratégico para os movimentos feministas.

“Frequentemente, as mulheres mais radicais fazem as outras parecerem razoáveis e permitem que elas realizem mudanças”, disse ela.

Algumas mulheres ainda acreditam que chamar a atenção de homens enquanto grupo faz mais mal do que bem. Em artigo de opinião para o “Le Journal du Dimanche”, a filósofa Élisabeth Badinter criticou o “pensamento binário” do “neofeminismo beligerante”. Outros apoiam Harmange e Coffin, mas não chegam a se chamar de misandristas.

Rokhaya Diallo, uma proeminente jornalista negra e ativista pela igualdade racial e de gênero, disse em uma entrevista por telefone que não quer “centralizar meu ativismo em torno dos homens”.

Diallo observou que também é mais difícil para as mulheres negras seguir o exemplo de Harmange e Coffin. “Quando você é uma feminista não branca, isso será rapidamente analisado como uma espécie de ódio aos homens brancos”, disse ela. “A misandria vai ser racializada”.

A ameaça de assédio quase constante é real. Coffin disse que nos piores dias dos últimos meses, foi alvo de “milhares e milhares” de mensagens por dia. Ela entrou com várias queixas policiais, incluindo três por ameaças de morte, e, em certo ponto, foi colocada sob proteção policial.

Harmange também recebeu ameaças de estupro e morte. Ambas as escritoras disseram que o pior do abuso veio depois que organizações midiáticas e veículos noticiosos de prestígio somaram seu peso aos críticos do trabalho feminino, como quando um jornalista da estação de rádio Europe 1 chamou os escritos de Coffin de “um projeto moral genocida” em outubro.

Como resultado, Harmange, uma nativa digital que credita parcialmente às mídias sociais seu despertar político como estudante, teve que fazer uma pausa do Twitter e tentou se limitar a “cinco minutos por dia” no site.

Seus pedidos por sororidade não passaram despercebidos, no entanto. As expressões de apoio mitigaram o efeito do abuso, e Coffin apontou para a “alegria” de publicar suas experiências como mulher e lésbica: “A linguagem é tão importante para libertar a mente.”

E o fato de que autoras como elas estão sendo abraçadas pelo pequeno mundo editorial francês — perseguido por acusações de clientelismo e falta de diversidade — sugere que alguns limites estão se movendo. A romancista Chloé Delaume, autodenominada misandrista, recebeu o prestigioso Prêmio Médicis em novembro. Em uma entrevista por telefone, ela disse que, quando era nova no cenário literário dos anos 2000, a misandria era “vista como uma piada”.

Harmange agora tem três outros livros programados para publicação, incluindo um romance que ela escreveu antes de “Moi les hommes, je les déteste”, chamado “Limoges pour mourrir” (Limoges para morrer, em tradução livre), que será lançado este ano ou em 2022, e um ensaio sobre sua difícil experiência com o aborto, previsto para 2022.

Acima de tudo, o sucesso de seu primeiro livro publicado significa que ela pode pagar suas contas. Pela primeira vez em anos, disse Harmange, ela não precisava se perguntar se teria que voltar a morar com os pais.

“Nunca fui corajosa o suficiente para ser um modelo, uma mulher inspiradora”, escreveu ela há dois anos no post que levou a “Moi les hommes, je les déteste”. Para uma geração de feministas francesas, ela pode ter se tornado uma.

 

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