Inédita, a alta taxa daria tempo para o organismo infectado criar anticorpos, evitando o avanço da doença. Os resultados desse estudo foram recém-publicados na revista científica internacional Molecules.
— Esse peptídeo tem a capacidade de se ligar a uma enzima do vírus (a PLPro) que é responsável por processar algumas moléculas que fazem a reprodução viral. Então, se inibimos a ação dessa enzima, diminuímos a multiplicação das partículas virais — explica Eduardo Maffud Cilli, professor do Instituto de Química e um dos autores do estudo.
A enzima que é inibida pelo peptídeo do veneno da cobra está presente em todas as variantes do coronavírus descobertas até agora. Ela não faz parte da formação da estrutura do vírus — que frequentemente sofre mutações para se adaptar melhor ao hospedeiro. Sua função é ajudar a multiplicar os vírus já instalados.
— O gene que é responsável pela produção desta enzima aparece em todas as variantes. Isto mostra que este peptídeo tem grande potencial de funcionar contra qualquer uma delas — afirma Salmo Raskin, médico geneticista e diretor do Laboratório Genetika, de Curitiba, que não participou do estudo.
É importante ressaltar que apenas a molécula tem ação contra o coronavírus. O restante do veneno da cobra Jararacuçu não tem capacidade de impedir a replicação viral do Sars-Cov-2. A picada dessa cobra pode causar hemorragia, inchaço e destruição dos tecidos da região lesionada. Segundo a Fiocruz, a jararacuçu é responsável por 90% dos envenenamentos por cobra no Brasil, sendo a serpente que mais pica seres humanos no país.
— Analisamos uma toxina do veneno e percebemos que uma parte dela poderia ter uma atividade contra o coronavírus —detalha Cilli.
Os cientistas colocaram o peptídeo em células de macaco cultivadas em laboratório. Uma hora depois, selecionaram uma amostra do coronavírus e infectaram as células dos primatas. Após dois dias, os pesquisadores observaram que o coronavírus não se reproduziu com a mesma velocidade observada em condições normais. Essa etapa do estudo foi realizada no Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, em São Paulo, onde uma amostra do coronavírus está isolada.
O próximo passo foi entender qual era o mecanismo que dificultava a replicação viral do Sars-CoV-2. Com a parceria do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) da USP, que continha a enzima PLPro, os pesquisadores da Unesp observaram então que o peptídeo era capaz de inibir em até 75% replicação viral.
O estudo é promissor e ainda deverá ser testado em humanos. Segundo Cilli, este peptídeo é seguro mesmo em concentrações elevadas. Além disso, esse peptídeo é fácil de ser sintetizado, o que simplificaria a produção em larga escala caso venha a se tornar um remédio contra a Covid-19.
Risco ambiental
O passo seguinte do trabalho é avaliar a eficiência de outras dosagens da molécula e se ela é capaz de exercer outras funções na célula humana, como por exemplo, evitar que o vírus a infecte. Os cientistas querem analisar também qual seria a reação das células caso elas primeiro fossem infectadas com o coronavírus para posteriormente receber o peptídeo.
O novo composto pode até mesmo vir a substituir um tratamento em uso, os anticorpos monoclonais, um tipo de anticorpo “artificial” que é injetado em pacientes com Covid-19 grave, combatendo a replicação do coronavírus. No entanto, além de ser caro, esse tratamento perde a eficácia, já que seu alvo de ataque é a proteína Spike, que costuma sofrer importantes alterações a cada nova variante.
— Temos visto que a pandemia não vai acabar só com vacina. Então, esse estudo chega em um momento adequado porque é importante que se tente desenvolver medicamentos para evitar a replicação do vírus — avalia Raskin.
Não é incomum moléculas encontradas em venenos de animais servirem de medicamento para tratar doenças que afetam humanos. Do veneno da Jararaca, por exemplo, foi desenvolvido o captopril, um dos remédios mais populares no tratamento da hipertensão. Já o exenatide é um remédio contra diabetes produzido com base num hormônio encontrado na saliva do lagarto Monstro-de-Gila. Assim, Cilli faz um alerta:
— Essas queimadas Brasil afora destroem microrganismos e plantas que podem nos dar a cura para várias doenças.