O Globo
CABUL — Enquanto os países ocidentais correm para fechar as embaixadas e evacuar seus diplomatas, nações vizinhas ao Afeganistão começam a se preparar para a convivência com o Talibã e apontam os dedos para os Estados Unidos. Quase 20 anos após a invasão americana, o grupo extremista tomou Cabul no domingo, voltando efetivamente ao poder.

Até a manhã desta segunda-feira, as embaixadas da China, da Rússia, do Paquistão continuavam a funcionar, algumas delas com pessoal reduzido. Nas últimas semanas, à medida que a volta do Talibã ao poder tornava-se cada vez mais provável, chineses, russos e iranianos já sentavam-se à mesa com os insurgentes de olho na segurança de suas fronteiras.

Os primeiros pronunciamentos da vizinhança são mais amenos que os ocidentais: o mais contundente veio do Paquistão, acusado de financiar e apoiar o grupo islâmico desde antes de seu surgimento, há quase 30 anos. Em um vídeo transmitido pela televisão estatal no domingo, o premier Imran Khan aparece dizendo que o grupo “rompeu as correntes da escravidão mental”.

O Paquistão, que nos anos 1990 foi um dos três países a reconhecer o regime do Talibã, é há anos um porto-seguro para os combatentes, apesar de negar dar qualquer tipo de assistência. Setores mais progressistas, contudo, temem que o retorno talibã ao poder fortaleça grupos islamistas radicais paquistaneses.

A Chancelaria russa, por sua vez, anunciou o estabelecimento de contatos com representantes das “novas autoridades afegãs”, apesar de considerar o Talibã uma organização terrorista desde 2003.

O embaixador russo se encontrará com representantes do Talibã na terça, disse o Kremlin, afirmando que os insurgentes prometeram “garantir a segurança do povo local”. De acordo com os russos, a situação na capital afegã está “se estabilizando” e um “banho de sangue entre os civis foi evitado”.

‘Relações amistosas’

Disseram, contudo, que não correrão para reconhecer o grupo como mandatário legítimo do Afeganistão — irão “ver cuidadosamente” como o Talibã irá se portar antes de “tomar as conclusões necessárias”. Na sessão de emergência do Conselho de Segurança da ONU, afirmaram que “não há motivo para pânico”.

Se o grupo fundamentalista tem suas origens nos escombros da ocupação do Afeganistão pelos soviéticos (1979-1989), hoje o Kremlin preza pela estabilidade na Ásia Central, região onde exerce grande influência. Em paralelo ao diálogo com o Talibã, Moscou realizou nas últimas semanas exercícios militares com o Uzbequistão e o Tajiquistão.

Pequim, por sua vez, disse que deseja manter “relações amistosas” com os talibãs e que respeita “o direito do povo afegão de decidir seu próprio destino e futuro. Segundo a porta-voz da Chancelaria chinesa, Hua Chunying, “os talibãs indicaram várias vezes a esperança de desenvolver boas relações com a China”.

A China vinha criticando nas últimas semanas a condução da retirada das tropas americanas, chamando-a de “irresponsável” e apontando para o risco de uma guerra civil no país. A maior preocupação de Pequim é que o Afeganistão sob o comando do Afeganistão seja um solo para extremistas.

O temor é que surja um movimento demandando a independência da província chinesa de Xinjiang, onde 60% da população é muçulmana, principalmente da etnia uigur. A conduta chinesa, contudo, segue com sua política de dialogar com quem está no poder, desejando um Talibã de postura moderada.

A imprensa estatal afirma que o governo pretende participar do esforço de reconstrução afegão, aumentando seus investimentos no país — buscando ocupar, possivelmente, o vácuo deixado pelos americanos.

Oportunidade para paz

O Irã também havia recebido os talibãs nas últimas semanas, quando as forças extremistas já controlavam a maior parte da fronteira de 950 km entre ambos os países, apesar de sua relação histórica de inimizade: o regime iraniano é xiita, enquanto o Talibã é sunita.

— O Irã apoia os esforços para restaurar a estabilidade no Afeganistão e, como uma nação vizinha e irmã, convida todos os grupos no Afeganistão a chegarem em um acordo nacional  — disse o presidente Ebrahim Raisi, que defende um governo afegão que inclua todos os grupos sectários e étnicos do país.

Segundo Raisi, “a derrota militar americana e sua retirada” devem ser encaradas como uma “oportunidade para restaurar a vida, a segurança e a paz permanente” em território afegão. Washington, no passado recente, já acusou Teerã de fornecer ajuda aos soldados do Talibã, algo negado pelo regime iraniano.

A Índia, simultaneamente, tinha um canal secreto de negociações com o grupo extremista, segundo o jornal Hindu Times: o objetivo era não só proteger seus investimentos, mas impedir que um futuro regime seja uma marionete do Paquistão e impedir que grupos armados anti-Índia patrocinados pelo Paquistão se fortaleçam.

O país, contudo, já evacuava há dias pessoal diplomático, mas segundo a imprensa local, cerca de 200 indianos e aliados afegãos permanecem em Cabul. Nova Délhi prometeu também ajudar sikhs e hindus afegãos, afirmando que irá facilitar sua ida para a Índia.