DITADURA MILITAR – João Saldanha: O técnico da seleção brasileira demitido por contrariar um presidente
Por William Helal Filho
O GLOBO
O clima na seleção brasileira não estava nada bom quando João Saldanha reuniu os jogadores e a comissão ténica no gramado do Itanhangá Golfe Clube, em São Conrado, no Rio, para tentar apaziguar os ânimos. “Vocês devem estar lendo muita coisa nos jornais, mas é preciso que saibam que eu não pedi demissão e nem vou pedir”, disse o treinador gaúcho na tarde daquela terça-feira, 17 de março de 1970: “Fui convidado para o cargo e levo o barco até o fim, se quiserem”.
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Por volta das 19h do mesmo dia, em reunião na sede da Confederação Brasileira dos Desportos (CBD), o dirigente Silvio Pacheco comunicou a decisão do presidente da entidade, João Havelange, de “dissolver” a comissão técnica, semanas antes da viagem para a Copa do Mundo do México. No estacionamento do prédio, em conversa com repórteres ávidos por informações, Saldanha reagiu à notícia com a sua peculiar ironia: “Dissolver, não, porque não somos sorvetes”, disse ele. “O que aconteceu é que fomos demitidos”, concluiu, antes de dar a partida em seu Volkswagen.
O jornalista nascido em Alegrete, no Rio Grande do Sul, não era uma pessoa fácil no trato. Intransigente e irrascível, arrumava encrenca com quer que fosse e era capaz de trocar tiros quando pisavam em seus calos. Mas, louco por futebol, tinha um conhecimento invejável sobre o esporte e comunicava muito bem a sua forma de ver o jogo. Ex-jogador do Botafogo, tornou-se um dos comentaristas mais populares do país, que não se abstinha de fazer críticas severas quando os negócios de cartolas interferiam com o que acontecia entre as quatro linhas.
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Em fevereiro de 1969, a CBD causara surpresa ao anunciar Saldanha para conduzir o escrete brasileiro nas eliminatórias da Copa que seria disputada no ano seguinte, no México. Além do inusitado que era um comentarista esportivo sem papas na língua à frente da seleção, o cronista gaúcho havia sido militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), perseguido pela ditadura militar vigente na época. “No Brasil, é preciso coragem, muita coragem, para escolher o homem certo”, elogiou Nelson Rodrigues em sua coluna no GLOBO. “A partir do momento em que escolheu João Saldanha, Havelange descobriu, ao mesmo tempo, o caminho da vitória”.
Nelson chamava Saldanha de “João sem medo”. O treinador mandou às favas o conhecido apelido de “seleção canarinha” e avisou que montaria um “time de feras”. Seu elenco tinha como base as equipes do Santos e do Botafogo e, portanto, valia-se do entrosamento entre os jogadores dos dois melhores times em ação naqueles tempos. Sob a sua batuta, o escrete formado por craques como Pelé, Tostão e Gerson obteve uma sequência histórica de seis vitórias em seis jogos das eliminatórias, garantindo com facilidade uma vaga no Mundial de 1970.
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Tudo parecia estar pronto para a sonhada conquista da Taça Jules Rimet, após a campanha pífia na Copa da Inglaterra, em 1966. Mas havia uma tempestade a caminho. Saldanha jamais escondera suas críticas ao governo militar. Em entrevistas após a abertura política, chamaria o então presidente da República, Emílio Garrastazu Médici, de “maior assassino da história do Brasil”. Em janeiro de 1970, no sorteio dos grupos da Copa, no México, ele entregou a representantes de diversos países um dossiê citando os mais de 3 mil presos políticos e centenas de opositores torturados e assassinados pelo regime. O Brasil vivia, então, o período mais violento da ditadura militar. O Ato Institucional 5 (AI-5) estava em pleno vigor.
O governo dos generais estava em franca campanha para se aproximar da seleção. Queria faturar apoio público com o eventual êxito do time no México. No dia 8 de março, um repórter assuntou Saldanha sobre uma entrevista em que o presidente Médici manifestou sua vontade de ver o atacante do Atlético-MG Dario José dos Santos, o Dadá Maravilha, convocado para a seleção brasileira. Foi quando o treinador respondeu com uma declaração célebre que, nos bastidores, viria a selar sua demissão: “O presidente escala o ministério, e eu escalo a seleção”.
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O “atrevimento” coincidiu com uma fase em que a equipe vinha sendo questionada na imprensa. No dia 4 de março, o Brasil perdera de 2 a 0 para a Argentina durante um amistoso em Porto Alegre, com Médici presente no estádio. Quatro dias depois, a seleção deu o troco, vencendo os rivais por 2 a 1 no Maracanã, no Rio, outra vez sob os olhos do general presidente, que assistiu ao jogo com radinho de pilha no ouvido. Entretanto, no dia 14 do mesmo mês, o time empatou em 1 a 1 com o fraco elenco do Bangu Futebol Clube. A crônica daquela partida publicada pelo GLOBO criticou um elenco “sem padrão, sem ritmo e sem condição física satisfatória”.
Outros elementos serviram de argumento para a demissão de Saldanha. Na noite de 12 de março, em um de seus arroubos de fúria, o técnico entrou armado e berrando impropérios na concentração do Flamengo, na Rua Jayme Silvado, em São Conrado, no Rio, para tirar satisfação do treinador rubor-negro, Dorival Knipel, também chamado de Yustrich, que horas antes ofendera duramente Saldanha em entrevista no rádio. O clube carioca reagiu exigindo da CBD um pedido público de desculpas e ameaçando entrar na Justiça contra o “invasor”. Dias depois, o presidente da comissão técnica, Antônio do Passo, pediu demissão criticando a falta de padrão de jogo e de “tranquilidade” no ambiente da seleção. Crise instalada.
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Para completar, no dia 16 de março, Saldanha revelou que não escalaria Pelé para um amistoso contra o Chile, dali a seis dias, em São Paulo. Havia especulações de que o craque do Santos não estava enxergando bem à noite. Ainda assim, o técnico foi bastante questionado. Ao justificar sua decisão, ele proferiu um termo racista que não seria tolerado nos dias de hoje: “Cheguei à conclusão de que o crioulo está mal e precisa descansar um pouco mais para voltar a sua melhor forma”. Horas mais tarde, na derradeira reunião na CBD, Saldanha foi demitido com toda a comissão técnica. Zagallo foi escolhido como o novo treinador, pregando “humildade” no comando. No dia 20 de março, Dadá Maravilha chegava ao Rio para treinar com a seleção.
Lendo os jornais daquela época, não há pistas de que a influência de Médici pesara na demissão de Saldanha. O próprio ex-treinador, em seus artigos diários publicados no GLOBO, não classificou o conflito público com o presidente como motivo para sua saída, alegando que a demissão fora provocada mais por seus constantes embates com cartolas do Brasil e da Europa. Mas, hoje, sabemos que a imprensa estava sob rígida vigilância, com a presença de censores do governo nas grandes redações para filtrar quaisquer notícias prejudiciais à imagem do regime. Após o fim da ditadura, em 1985, a verdade veio à tona.
Em 25 de maio de 1987, Saldanha foi entrevistado no programa “Roda Viva”, da TV Cultura. Ele revelou que sabia que seus dias na seleção estavam contados quando Médici assumiu a presidência, em outubro de 1969, após a morte de seu antecessor, Artur da Costa e Silva. Segundo o jornalista esportivo, com Médici, “começou a pressão”. Saldanha disse que Havelange chegou a implorar: “Pelo amor de Deus, chama o Dario que a gente fica bem com os homens”. Mas que ele, então, respondia, “Havelange, não adianta se abaixar, quanto mais a gente se abaixar, mais eles vão malhar”. Ainda de acordo com o ex-treinador, ele deixou claro que Dario não seria convocado: “Aí, pronto, me mandaram embora”.