RIO — “Ela não tem ideia de quem levou sua bicicleta, mas a primeira coisa que vem à sua cabeça é que algum neguinho levou”. Assim o estudante de educação física e instrutor de surfe Matheus Ribeiro, de 22 anos, descreve, num texto, o comportamento da jovem que, no sábado à tarde, o abordou na Praia do Leblon, convencida de que a sua bike, que acabara de ser roubada, era a que estava com ele.

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Negro, o jovem montava uma “magrela” turbinada, elétrica, e esperava pela namorada. Numa fração de segundos, ele se viu dentro de uma cena inusitada de “suspeito”. Era Dia dos Namorados. Ele então mostrou suas chaves, não adiantou, exibiu fotos antigas no celular, e nada. O constrangimento só chegou ao fim quando o rapaz que acompanhava a moça pegou, sem pedir autorização, a tranca da bicicleta de Matheus e testou sua própria chave nela. Ele então pendura a tranca no guidão e pede desculpas. Irritado, Matheus fala uns palavrões e manda o casal sair dali. Antes de ir embora, o rapaz deixa uma resposta no ar: “Eu não te acusei, só estou te perguntando”.

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As palavras de entendimento do que de fato tinha acontecido, de acordo com Matheus, só viriam no dia seguinte, num texto, entre o desabafo e a indignação, sob o título “Agora já sem clima de amor”, que postou em suas redes sociais. Após ter se defendido de um crime que não cometeu, Matheus esteve ontem na 14ª DP (Leblon) para denunciar que foi vítima de racismo. A polícia, no entanto, trata o caso como calúnia porque não houve menção racista explícita. O fim do embate sobre a bicicleta, quando o casal parece se convencer do engano, foi filmado pelo celular do próprio Matheus. As imagens provocaram grande discussão na internet sobre racismo estrutural.

— Precisei me esforçar ao máximo para provar minha inocência porque já me consideravam culpado por ser negro — diz Matheus, acrescentando que pretende levar a denúncia adiante para que esse tipo de associação entre negros e crimes deixe de ser rotina. — Para que outras pessoas não passem por isso.

O próprio Matheus Ribeiro filmou jovem com quem discutiu por bicicleta no Leblon ao ser acusado de roubo Foto: Instagram / ReproduçãoO próprio Matheus Ribeiro filmou jovem com quem discutiu por bicicleta no Leblon ao ser acusado de roubo Foto: Instagram / Reprodução

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No texto, Matheus escreve que a imagem de negros pedindo esmola ou vendendo jujuba no Leblon é naturalizada, mas andando de bicicleta elétrica, não. Fora da cena esperada levantam suspeita. “São coisas que encabulam os racistas. Eles não conseguem entender como você está ali sem ter roubado dele, não importa o quanto você prove”. Nascido e criado na Maré, Matheus dá aulas de surfe na Praia do Arpoador e passa parte da semana na casa da namorada, em Copacabana. A vida de menino pobre começou a mudar depois que ele ganhou uma bolsa para praticar o esporte do professor Marcelo Bispo, que também é negro e se enche de orgulho do pupilo:

— Ele é educado, tem um astral lá em cima. Sempre brinquei que estava dando sorte porque ele poderia ser modelo de tão bonito. Quando eu vi o que aconteceu com ele, fiquei chocado. Foi grave, pesado.

Os jovens Mariana Spinelli e Tomás Oliveira, que se envolveram na confusão, serão ouvidos pela polícia. Mariana — cuja bicicleta elétrica teria sido roubada pouco antes do bate-boca na rua —e o rapaz não foram localizados para comentar o episódio. Porém, a repercussão da história já teve consequências. Designer da Papel Craft, Tomás foi dispensado pela loja. A jovem, que trabalhava no Espaço Vibre, também foi demitida. A empresa, por nota, se solidarizou com a “dor sofrida” por Matheus.

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Para a advogada criminalista Priscila dos Santos, o debate precisa ser ampliado porque o racismo estrutural ainda não é contemplado pela legislação brasileira:

— Na época da Constituinte, nós não trabalhávamos com a questão do racismo estrutural. A sociedade, no entanto, se alimenta do estereótipo do negro associado à marginalidade.