Pantanal está em risco por danos dos incêndios de 2020 e 3º ano de seca
Nos últimos meses, a reportagem da Folha revisitou algumas das regiões mais devastadas, incluindo os santuários da onça-pintada e da arara-azul. Em meio à água escassa, encontrou histórias de resiliência, assim como uma forte preocupação com o futuro do bioma.
FAZENDEIRO LEVOU MAIS DE SEIS MESES PARA CONTER INCÊNDIO
Em 11 de setembro de 2020, o fogo queimou 4.300 hectares da propriedade do pecuarista Pedro de Oliveira Rodrigues, 71, em apenas duas horas. Mas a tragédia não terminou naquele dia.
“O fogo não acabou. Dou um exemplo aqui, eu demorei mais de seis meses para conter um foco de fogo”, afirma seu Pedrão, como é mais conhecido, na sede da fazenda São Francisco de Assis, uma das poucas áreas que escapou das chamas.
Fenômeno que ocorre em várias partes do Pantanal, o fogo subterrâneo ou de turfa queima matéria orgânica enterrada a alguns metros da superfície. Por isso, é mais difícil de ser controlado, até mesmo pelas chuvas.
Rodrigues faz questão de nos levar até o local do foco mais resistente. Em meio à terra revirada, buritis (espécie de palmeira) tombados tinham apenas as raízes queimadas. Para conter o incêndio naquele trecho, o fazendeiro pagou uma escavadeira para cavar uma valeta em volta de dois hectares.
“Eu tive essas condições de fazer, mas quem não tem? O poder público deveria vir não para multar, mas para ver o que está acontecendo. O erro não é do produtor”, diz.
O pasto da fazenda já se recuperou em parte, mas, em várias áreas, cresce sob um vasto paliteiro de palmeiras mortas. A maioria das árvores nativas da área de preservação permanente também morreu pelo fogo.
O fazendeiro aponta a recente pavimentação da rodovia estadual MT-040, que corta a sua fazenda, no município de Santo Antônio de Leverger (a cerca de 34 km de Cuiabá), como um dos principais culpados da tragédia do ano passado.
Ele cita o trecho em que as obras represaram um riacho, causando a morte da vegetação nativa dos dois lados da estrada, por falta de água e também em consequência da inundação.
Ao todo, Rodrigues teve 6.000 hectares queimados, incluindo as cercas. A perda no rebanho também foi grande: 1.005 reses adultas morreram calcinadas.
“Isso doeu em mim. Não tem como não ter emoção se você viu de perto”, afirma o pecuarista, com os olhos marejados. “Não é custo financeiro, graças a Deus, a minha família sobreviveu. Corta alguma coisa, mas sobreviveu”, conclui.
POPULAÇÃO DE ARARA-AZUL DIMINUI POR FALTA DE ALIMENTO
A fazenda São Francisco do Perigara, no município de Barão do Melgaço (MT), concentrava 15% da população livre de araras-azuis (Anodorhynchus hyacinthinus), o maior santuário mundial da espécie ameaçada de extinção. Até que, em agosto de 2020, o fogo atingiu 92% da propriedade.
Em setembro passado, a Folha acompanhou o trabalho de campo de pesquisadores do Instituto Arara Azul na fazenda, de cerca de 25 mil hectares. O objetivo era fazer a contagem da população nos locais de repouso e dormitório e avaliar a situação de outras espécies.
Ao todo, foram contabilizadas 409 araras-azuis. Antes do incêndio, essa época do ano concentrava de 500 a 800 espécimes —em setembro de 2020, a contagem somou 736. O instituto atribui a diminuição à escassez de alimentos.
Coordenadora da expedição e presidente do instituto, a bióloga Neiva Guedes afirma que, dada a extensão do incêndio, o pior da história da fazenda, ela inicialmente estimou um impacto ainda mais devastador.
“Meu medo era que não tivesse mais araras. Quando sobrevoei [em setembro de 2020], achei que tinha acabado. Mas, ao descer e andar no campo com a equipe do Arara Azul, a gente ficou surpreso com a quantidade de animais: emas e araras-azuis com filhotes recém-nascidos. Elas fizeram a postura depois do fogo”, afirma.
Guedes pesquisa as araras-azuis há 31 anos. Por sua dedicação à preservação da espécie, passou neste ano a integrar o hall da fama da ONU Mulheres, organização das Nações Unidas dedicada à igualdade de gênero.
A pesquisadora cita dois dois fatores que contribuíram para a sobrevivência da arara-azul na fazenda: algumas ilhas de vegetação intactas ou pouco queimadas que serviram de refúgio e o fato de o acuri, palmeira que fornece o principal alimento da arara-azul, ser mais resistente ao fogo.
Por outro lado, o fogo levou as araras-azuis a se adaptarem. Antes do incêndio, elas se concentravam perto da sede da fazenda. Depois, preferiram o Rubafo, uma grande baía.
Em novembro, porém, funcionários da fazenda relataram que a baía havia secado pela primeira vez na história. Para reavaliar a situação, novas viagens técnicas serão feitas pelos pesquisadores. “Estamos vivendo uma época de poucas águas”, resume Guedes.
FAUNA SOBREVIVENTE É ALIMENTADA EM COCHOS EM SESC
Em 2020, o Sesc Pantanal se tornou um dos símbolos da maior tragédia ambiental do bioma. Sua RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural), a maior unidade de conservação privada do país, teve 93% dos 108 mil hectares devastados ao longo de quase três meses. O hotel em anexo ficou cercado pelo fogo.
Um ano depois, o hotel Sesc Porto Cercado estava com as reservas esgotadas durante o feriado de Finados, ocasião da visita da reportagem. Ainda operando com a ocupação reduzida devido à Covid-19, voltou a oferecer passeios de barco pelo rio Cuiabá, onde, em vários trechos, o verde reocupou o cinza e o marrom. Mas a superação dos impactos ainda está longe do fim.
“A flora e a fauna estão se reestruturando. Não falamos em recuperação ou restauração porque isso é a longo prazo”, diz a gerente de pesquisa e meio ambiente do Sesc Pantanal, a bióloga Cristina Cuiabália.
Trata-se de uma retomada desigual, segundo a pesquisadora. A vegetação próxima aos rios, corixos e baías, típica de lugares úmidos, possui menor resiliência ao fogo. Por outro lado, a vegetação de cerrado, presente nas áreas mais altas, está voltando mais rapidamente. Outra variável é o grau de severidade do incêndio em cada local.
Com relação à fauna, uma boa surpresa, apesar da grande mortandade. Uma equipe de 30 pesquisadores do Museu Nacional, do Rio de Janeiro, que chegou para encontrar carcaças, acabou se deparando com muitos animais vivos.
Alguns dos esqueletos estão sendo levados para a capital carioca, onde ajudarão a recompor o acervo perdido no incêndio de 2018, que arrasou o prédio.
A explicação encontrada é que o trabalho dos brigadistas reduziu em 90% a velocidade da propagação do fogo na RPPN, dando chance de fuga à bicharada.
A descoberta levou o Sesc Pantanal a adotar várias medidas para auxiliar os sobreviventes em meio à seca, ainda mais severa neste ano em comparação a 2020. Durante quatro meses após o incêndio, água e alimentos foram colocados semanalmente em cerca de 160 cochos, principalmente em pontos distantes dos rios Cuiabá e São Lourenço.
Os brigadistas também conseguiram salvar a pequena casa de barro do pantaneiro Benedito Alves da Silva, o Dito Verde.
Único morador da RPPN graças a um acordo com o Sesc Pantanal, ele mora na mesma região há 79 anos. Em agosto de 2020, com o fogo próximo, foi convencido a deixar o local. Voltou dias depois, logo que a situação se estabilizou.
Nas quase oito décadas à beira do rio Cuiabá, o ribeirinho diz que nunca viu o Pantanal tão seco. “Eu não sei o que tem nesse rio, mas os jacarés estão magros. E tá morrendo jacaré demais. Ali naquela praia morreram três. Não sei se é peste, se está faltando comida.”
RODOVIA ESTÁ CERCADA DE LAGOAS SECAS E ÁRVORES MORTAS
Os moradores da região da Transpantaneira contam que, em um passado recente, boa parte dos 147 km da estrada-parque entre Poconé (MT) e o povoado de Porto Jofre era feita com os pneus dentro d’água. Jacarés, tuiuiús, veados e outras espécies faziam a alegria dos visitantes.
Em 2020, em vez do cenário idílico, a rodovia foi o principal retrato do incêndio recorde no Pantanal. Em quase toda a sua extensão, a vegetação queimou dos dois lados. O fogo também destruiu várias pontes de madeira que já não passavam sobre água. Por isso, nem era preciso reconstruir: bastava abrir um caminho sobre os leitos secos.
As queimadas voltaram a ocorrer neste ano, embora sem a mesma intensidade de 2020. Algumas pontes foram refeitas em concreto. A seca, porém, só se agudizou em todo o Pantanal.
No início da estrada, uma lagoa que antes concentrava centenas de jacarés estava sem água e sem répteis. Cerca de 200 animais haviam sido retirados dali pelo Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis) para tentar salvá-los.
Em outra lagoa, vários jacarés se concentravam em uma pequena ilha, enquanto outros se amontoavam disputando pedaços de uma capivara morta.
Nas margens da rodovia, milhares de árvores mortas. Muitas delas davam a impressão de terem renascido, mas na verdade estavam apenas cobertas por plantas trepadeiras.
“Em todas as [120] pontes, era possível ver água”, lembra o empresário Daniel Moura, 50, dono de uma pousada em Porto Jofre. “Neste ano, ficaram só aquelas poças, vários animais mortos, aquela disputa pelo espaço. Se não chover para encher a planície, a seca do ano que vem será três vezes pior.”
PARQUE DE MT SEGUE SEM FISCAIS E COM ORÇAMENTO APERTADO
Diante de turistas, quase todos estrangeiros, aglomerados em seis barcos, a onça-pintada Patricia dá o bote e abocanha um pequeno jacaré. As câmeras fotográficas não param de disparar enquanto ela devora a presa. Uma das lanchas se aproxima ainda mais e fica a menos de dez metros do maior felino das Américas, o que contraria as normas.
Um ano depois do incêndio que devastou a maior parte do Parque Estadual Encontro das Águas, em Mato Grosso, a boa notícia é que nenhuma das 45 onças-pintadas identificadas e batizadas da região morreu vítima do fogo. Até o Ousado, resgatado com as patas queimadas e que se tornou um dos símbolos da tragédia de 2020, voltou ao seu habitat após ter sido tratado em Goiás.
“A população de onça não sofreu impacto no primeiro momento, mas é um animal muito associado à água”, afirma o biólogo Fernando Tortato, que estuda os felinos da região há 11 anos.
“Se o Pantanal confirmar a tendência de um ambiente mais seco, imaginamos que haverá uma contração. Isso pode ser um processo natural, como nos anos 1960, mas intensificado por mudanças climáticas e desmatamento.”
Além das onças-pintadas, a ONG Panthera Brasil, onde Tortato trabalha, monitora as jaguatiricas, felinos de porte menor. Neste ano, a equipe do biólogo fez as primeiras capturas do animal para a instalação de colares com GPS. Até agora, os pesquisadores tampouco detectaram impacto do fogo na espécie.
Mas as onças são apenas parte da história. Com menor possibilidade de fuga, muitos pequenos vertebrados morreram. Na flora, as cicatrizes de 2020 são bastante visíveis.
“As matas ciliares na barranqueira do rio caíram tudo. Com o vento, as árvores secas quebraram e viraram uma situação apocalíptica”, diz o empresário Daniel Moura, proprietário de uma pousada em Porto Jofre.
O que não mudou foi a estrutura do parque estadual de 109 mil hectares, que continua sem plano de manejo. Não há escritório nem fiscais trabalhando no local. Com um orçamento de apenas R$ 76.330 para este ano, seu único funcionário com dedicação exclusiva é um gerente lotado em Cuiabá, a 251 km.
Sem fiscalização presente, a Sema (Secretaria Estadual do Meio Ambiente) instalou uma placa na entrada do parque, com os dizeres, em inglês capenga: “Pictures without authorization is: environmental crime” (foto sem autorização é crime ambiental).
“O estado que está colocando a placa proibindo foto é o mesmo que está há mais de dez anos postergando um plano de manejo que possibilitaria esse uso público. É muito cômodo proibir, mas e organizar esse parque para uso público?”, questiona Tortato.
Por outro lado, o biólogo afirma que, em comparação a 2020, houve avanços na resposta do governo estadual a focos de incêndio, com a rápida mobilização de pessoal e de aeronaves para o combate.
Questionada sobre a placa, a Sema informou que a captação de imagens dentro de unidades de conservação estaduais só pode ser feita mediante pagamento de taxa e de autorização prévia. A multa varia de R$ 5.000 a R$ 2 milhões.
O órgão não explicou o uso do termo “crime ambiental” para fotografia não autorizada.
LEITO SECO DE BAÍA EXPÕE CARCAÇAS DE JACARÉS E PEIXES
Localizada na região da Serra do Amolar, a fazenda Santa Tereza, de 63 mil hectares, foi um dos locais do Pantanal que o incêndio de 2020 devastou com maior intensidade.
Foi ali que o repórter fotográfico Lalo de Almeida registrou um macaco bugio calcinado, foto que se tornou simbólica da tragédia. Outra imagem sua, de um pássaro morto em pleno voo, tem sido usada em cursos do PrevFogo/Ibama para ilustrar a ferocidade do incêndio.
O fogo atingiu com mais força a morraria da fazenda, que dedica mais de 80% de sua área para preservação. As árvores mortas criam um ambiente fantasmagórico e lúgubre. Assim como em outras regiões, algumas delas servem de suporte para plantas trepadeiras e cipós, dando a ilusão de que sobreviveram.
Neste ano, a baía do Morro, uma das maiores da fazenda, secou completamente. Sobre o leito rachado, jacarés mortos e esqueletos de pintados, cascudos e piranhas. Havia também rastros de onça arrastando os répteis para serem devorados na mata próxima.
Na última poça de água, uma sucuri de três metros digeria os últimos bagres.
“Essa aí era uma baía grande, fechada. Igual a essa, não tinha visto secar, não”, afirma o administrador da fazenda, Rafael Brandão Galvão.
Bugios, cobras e sapos desapareceram. Houve mudança no comportamento dos pássaros, que perderam o medo do homem e passaram a procurar a sede das fazendas para se alimentar e se hidratar.
“Começou a aparecer papagaio, tucano, bem-te-vi. Teve pessoa que deu água até na mão”, conta o pantaneiro. “Papagaio comendo bocaiúva no chão, você passava perto dele, ele nem ligava. Os passarinhos ficaram mansos.”
De tanta fome, os papagaios devoraram até limão, recorda. “Nunca vi passarinho comer limão. Estava crítico para eles.”
A reportagem foi produzida com apoio do Documenta Pantanal.