Como o nazista Josef Mengele se escondeu duas décadas no Brasil até a morte
É final dos anos 1970. Quando cai a tarde, ele assiste na televisão às novelas das seis, das sete e das oito, que compreende bem apesar de sua língua materna ser o alemão. Isso exceto às quartas, quando costuma receber os amigos para jantares animados.
Pouco mais de 30 anos antes, esse homem, o oficial nazista Josef Mengele, foi responsável direto por orientar e perpetrar o assassinato de milhares de homens, mulheres e crianças dentro do campo de concentração de Auschwitz, no sul da Polônia.
Não é como se ele fosse um soldado qualquer. Mengele, médico apelidado de “anjo da morte” por decidir quais prisioneiros seriam exterminados e quais seriam objetos de seus experimentos sádicos de verniz científico, era um dos criminosos de guerra mais procurados do mundo àquela altura.
Mesmo assim, passou cerca de 18 anos morando no Brasil, a partir da década de 1960, quase sem ser incomodado. Como isso pôde acontecer?
Essa é uma das perguntas que aparecem com insistência em “Baviera Tropical”, livro da jornalista Betina Anton publicado agora pela Todavia e já com contrato fechado para sair em mais oito países —incluindo a Polônia.
Conforme o livro avança, a resposta clareia. Anton, mestre em história pela London School of Economics e editora da cobertura internacional da TV Globo, faz um quadro explicativo didático.
“O primeiro fator é que Mengele foi extremamente cuidadoso”, afirma ela, em entrevista por telefone. “Desde que saiu de Auschwitz ele já usava um nome falso, enquanto outros colegas nem pensavam nisso e até o repreendiam.”
Enquanto o Tribunal de Nuremberg punia exemplarmente nazistas de alta estirpe na Europa, Mengele foi recebido de braços abertos pela Argentina de Juan Perón, retratado no livro como um entusiasta do Terceiro Reich.
Depois, o médico se mudou para um Paraguai sob ditadura de Alfredo Stroessner e, quando seu rastro ficou quente, veio para o Brasil, sempre trocando de nome nos documentos e encontrando anfitriões cuidadosos.
“Esse é o segundo fator. A lealdade que ele encontrou entre as pessoas que sabiam da sua identidade”, prossegue Anton. “Mesmo nas relações mais íntimas, ele só revelava quem era depois de um ano de convivência.”
Aqui, a história dele chega bem perto da jornalista. Toda a pesquisa do livro foi despertada de sua relação com uma professora do colégio germânico em que estudava quando era pequena. Um belo dia, a mulher que as crianças conheciam como “Tante Liselotte”, ou tia Liselotte, parou de aparecer na escola e começou a ser citada nos jornais.
Já no primeiro capítulo, o leitor descobre que a professora não só era próxima de Mengele como foi responsável por levar seu corpo ao cemitério, em 1979, e mentir sobre sua identidade. O mundo só descobriu que o nazista estivera no Brasil —e morrera afogado numa praia de Bertioga, no litoral paulista— seis anos depois, em 1985.
“E o terceiro fator”, conclui Anton, “foram os golpes de sorte”.
O livro conta, por exemplo, a história da polonesa Cyrla, que sofreu na pele as arbitrariedades de Mengele durante sua retenção em Auschwitz. Seu corpo foi mergulhado em água fervente e congelante —uma das diversas demonstrações, nas palavras da pesquisadora, de que as práticas do nazista tinham nada de método científico e muito de curiosidade mórbida.
Mas Cyrla sobreviveu, se mudou com o marido para o Brasil e passou a ser conhecida como Cecília. Numa temporada de férias na pacata cidade paulista de Serra Negra, um amigo comentou o rumor de que Mengele também vinha repousando por ali —o que, apesar de circular como um boato inacreditável, era verdade.
Cecília, em vez de ir à polícia, teve uma reação oposta. Achou que o nazista estava ali atrás dela e de outros judeus. “Tomada pelo medo, empacotou suas coisas e jamais voltou para lá.”
A pesquisa de Anton se encorpa com detalhes da temporada brasileira de Mengele que nunca haviam sido expostos a fundo, daí o interesse de tantas editoras estrangeiras. Por exemplo, é possível se aprofundar nas cartas que o nazista trocou com a família —que sempre soube em que lugar do mundo ele estava—, cuja escrita tortuosa e “um tanto rococó” Anton ajuda a decifrar.
Muitas das novidades do livro provêm de um trabalho jornalístico que incluiu acesso a dossiês da Polícia Federal colhidos após a morte do alemão e até entrevistas in loco com agentes do Mossad, o serviço secreto israelense, que participaram da caçada a ele.
A pesquisa é peça relevante do xadrez internacional porque, nas palavras da autora, “suas vítimas se dispersaram por muitos países”. Se é difícil esperar algum tipo de justiça tardia, dá para completar ao menos um quebra-cabeça amargo sobre como um homem que tirou tantas vidas morreu livre e em paz, nos braços de seus amigos.