‘Esse negócio de esquerda e direita está superado’: Glauber Rocha e o abraço no general Figueiredo

O GLOBO – Ícone do cinema, diretor de clássicos como “O dragão da maldade contra o santo guerreiro” (1969), o baiano Glauber Rocha era visto como elemento subversivo pela ditadura militar. Em 1965, ficou 18 dias preso depois de vaiar o então presidente, o marechal Humberto Castello Branco, num protesto no Rio. Em 1971, exilou-se na Europa para fugir da perseguição. De acordo com a Comissão Estadual da Verdade do Rio, os órgãos da repressão chegaram a planejar a morte do cineasta, acusado pelos militares de “difamar” a imagem do Brasil.

Dez anos mais tarde, Glauber surpreendeu sua classe ao ser fotografado dando um abraço no general João Figueiredo, último presidente do regime, responsável por conduzir o país na redemocratização. Não faltaram críticas de artistas ao gesto do cineasta. No programa “Conversa com Bial”, da Globo, nesta quinta-feira, a atriz Paloma Rocha, filha de Glauber, contou que seu pai sofreu muito e ficou “acuado” enquanto seus colegas diziam que o diretor tinha se “vendido” à ditadura.

Na longa entrevista abaixo, publicada pelo GLOBO em 11 de fevereiro de 1981, oito dias após o encontro com Figueiredo, o cineasta explica por que procurou o então presidente, quando estava em Sintra, Portugal. Na conversa, Glauber elogia o general e fala de sua adesão ao Partido Democrático Social (PDS), sucessor da Aliança Renovadora Nacional (ARENA), que deu sustentação ao regime militar. Glauber Rocha e João Figueiredo em Sintra, Portugal, no dia 3 de fevereiro de 1981

Também durante a entrevista, o diretor pede a absolvição de Luiz Inácio da Silva, o Lula, que estava sendo processado por ter liderado as greves dos metalúrgicos no ABC Paulista. Segundo o artista, Lula era “um líder autêntico do povo brasileiro”.

Na época, Glauber se mostrava ressentido com a recepção negativa a seu último filme, “A idade da Terra”, que ele considerava sua melhor obra. O cineasta, por sua vez, criticava o que ele chamava de “decadência cultural” do cinema nacional. O diretor morreu seis meses depois daquela conversa, no dia 22 de agosto de 1981, vítima de uma septicemia, há 40 anos. Leia, abaixo, a entrevista na íntegra:

Como você definiria o seu encontro com Figueiredo, em Sintra?

Foi uma transação metafísíca do Eça de Queiroz. Sou leitor do Eça de Queiroz e estava em Paris, cansado, cansadíssimo. Então, pensei: “a Cidade e a Serra”. Abaixo Paris e viva a serra, viva o paraíso português. Também como sou apaixonado por “Os Maias”, a obra-prima de Eça de Queiroz, vim para o Hotel Central, que serviu de cenário para o maior escritor de todos os tempos. Cheguei aqui sábado, passando mal, mas, no dia seguinte, respirando o ar de Sintra, já tinha melhorado. Segunda-feira, quando fui à praça comprar um brinquedo para minha filha, uma portuguesa me disse: “O vosso presidente vem cá amanhã, ao Palácio de dona Maria”. Aí, pensei: Vou poder ver o Figueiredo pessoalmente. Eu nunca tinha visto Figueiredo

E, no dia seguinte, você foi encontrá-lo…

Com a minha curiosidade jornalísitica e de cineasta, quando o Figueiredo chegou a Sintra, comecei a rodar ali pelo Palácio de dona Maria. Encontrei Marco Antônio Kraemer, porta-voz da Presidencia da República, e comecei a conversar com ele. De repente, apareceu Dona Dulce, apertou minha mão e perguntou como eu estava. Disse que estava tudo bem. Logo depois, veio Figueiredo. Kraemer comunicou-lhe que eu estava presente. Para minha surpresa, Figueiredo veio faIar comigo, de mãos estendidas, simpaticamente. Abraçou-me e disse apenas esta frase: “Glauber, você é que é feliz, porque pode respirar este ar longe das exigências do protocolo”. Eu o abracei e respondi: “Presidente, parabéns por esta viagem, o senhor está iniciando uma nova jogada mundial”. Foram só 30 segundos. Mas 30 segundos em que vi Figueiredo a 20 centímetros. E aí, olhei bem a cara dele. Foi o maior close-up que fiz em toda a minha vida. Vi, na cara de Figueiredo, o sofrimento e a grandeza do Brasil.Glauber Rocha em visita ao Rio em agosto de 1978

Você ainda pretende se candidatar pelo PDS? O abraço em Figueiredo, aqui em Sintra, foi mais um passo no sentido de seu ingresso na política?

Olha, declarei à imprensa portuguesa que o meu encontro com Figueiredo foi o da consciência brasileira com a inconsistência brasileira. Ou seja, o Figueiredo é um chefe político, um chefe de Estado, é o presidente do Brasil; eu não sou chefe de nada, apenas um artista, um intérprete do inconsciente coletivo. Como dizia Ezra Pound, “os artistas são as antenas da raça”. Sou um artista, como Jorge Amado, Chico Buarque de Holanda, Caetano Veloso, Oscar Niemeyer, Carlos Drumond de Andrade. Manifestamo-nos transmitindo os desejos do inconsciente coletivo.

É um caminnho diferente daquele dos estadistas. Era a mesma relação que existia entre Camões e dom Manuel. Não existiria Camões se não existisse dom Manuel, que se preocupou com as descobertas. Estas não seriam cantadas e imortalizadas com os versos do poeta, sacou? O artista, sobretudo no mundo moderno, se vê jogado dentro da política. Fui falar com Figueiredo porque conclui que a sua viagem à Europa tinha inaugurado uma nova geopolítica. Figueiredo estabeleceu um equilíbrio nas relações entre os países do Terceiro Mundo. Figueiredo pode liderar o Terceiro Mundo, porque, como já disse anos atrás, é um militar e um político. Um político, aliás, que goza de grande popularidade. Nessa viagem, explodiu um novo Figueiredo, que o povo brasileiro recebeu perplexo, mas entusiasmado. Eu acho que nessa passagem por Portugal, Figueiredo incorporou o espírito de dom Pedro I, que proclamou a Independência do Brasil.

Mas, concretameníe, você vai ou não fazer carreira política no PDS?

Acho que a participação do artista na política é através de sua obra.Glauber Rocha antes do exílio na Europa, em maio de 1969

Você era considerado durante muitos anos no Brasil como um artista de esquerda. E por que agora aderiu ao PDS?

Esse negócio de esquerda e direita hoje no mundo está superado. O dogmatismo materialista e dialético, filosofia, aliás, que conheço bem, porque a estudei muito no período de 1970 a 1974, entrou em crise. A situação na Polônia, hoje, coloca em cheque os dogmas do marxismo. Acho que hoje, no Brasil, várias palavras, como direita, fascista, democrata, socialismo, reforma agrária, deveriam ser superadas em função de uma nova ideologia brasileira. O problema é que nenhum partido político brasileiro tem um programa social, político e cultural definido. Eu li os estatutos e constatei que o que existe é uma repetição do linguajar dos partidos europeus. Continuamos com as idéias fora do lugar. É preciso buscar na própria cultura brasileira um modelo político. O presidente Geisel já tinha falado nisso. Também Getúlio Vargas e dom Pedro II. Grandes brasileiros, como Euclides da Cunha, Gilberto Freire, Josué de Castro e Celso Furtado, também querem o modelo brasileiro.

Aderi ao PDS porque, de todos os programas, era o que enfocava os problemas sociais com uma proposta mais objetiva. Sou brasileiro-luso-tropicalista, e os dogmas do marxista já saíram da minha feijoada. No Brasil, é preciso existir integração, porque não é possível viver sob o capitalismo de Estado e nem sob o capitalismo selvagem.

Também Lula fez uma viagem à Europa. Qual a sua opinião sobre o PT?

A viagem do Lula foi tão importante quanto a de Figueiredo, por que avalisou a do presidente da República, pois demonstrou que o Brasil vive um processo democrático. Lula é um líder autêntico do povo brasileiro. Nordestino, de Pernambuco, é um líder tremendamente equilibrado e tem contribuído para a conscientização da classe operária brasileira, dentro de uma perspectiva nacional, democrática, não sectária. A viagem de Lula demonstra que existe democracia no Brasil. Mas lamento que venha a ser submetido a julgamento, a partir do dia 16 deste mês, pois mancha o processo de democratização. Se eu fosse julgá-lo, eu o absolveria antecipadamente.

Quais sâo os seus planos aqui em Portugal?

“A Idade da Terra” será lançado em abril na França e depois participará do Festival de Los Angeles, no dia 14 do março. Estou desempregado. Fui perseguido no Brasil, a ponto de perder o meu mercado de trabalho. Desempregado, mas com ideias, provavelmente rodarei um filme aqui em Portugal. Tenho também planos de filmar novamente no Brasil, mas confesso que estou fascinado com a revolução cinematográfica portuguesa. Quero buscar também as raízes de nossas origens. O cenário de Sintra me seduz. Quero concluir meus novos livros. No final deste mês, a Embrafilme lançará um livro que escrevi recentemente: “Revolução no Cinema Novo”. Tem 500 páginas e analisa criticamente o cinema brasileiro. Na Itália, está saindo um romance meu, editado pela Rádio e Televisão Italiana (RAI), que se chama “O nascimento dos deuses”. Quero publicar quatro ou cinco livros em Portugal.

O que você acha do acordo celebrado entre a Embrafilme e o Instituto do Cinema Português, que prevê livre circulação dos filmes brasileiros e portugueses nos dois países ?

É muito bom. A Embrafilme é a mais importante empresa cinematográfica do terceiro mundo, e o IPC está em uma fase de desenvolvimento. É importante sobretudo porque é em Portugal que, neste momento, está se processando uma nova arte cinematográfica. Em Portugal, existem cerca de 20 cineastas importantes. Não só o grande Manuel de Oliveira, mas também Antônio da Cunha Teles, José Fonseca da Costa, Fernando Lopes, PauIo Rocha, Rui Simões e Manuel Carvalheiro. Em Portugal, está acontecendo uma revolução cinematográfica, por isso estou aqui. Os portugueses não estão fazendo filmes comerciais, como no Brasil, mas de profundidade psicológica, com um tipo de imagem muito bonita, com uma montagem nova. Quer dizer: vai acontecer uma revolução cinematográfica em Portugal. Ao mesmo tempo, diretores importantes dos Estados Unidos e da Alemanha Ocidental estão vindo também.Othon Bastos em cena de 'Deus e o diabo na terra do sol', de Glauber Rocha

Há uma decadência cultural entre os cineastas brasileiros de todas as gerações. O grupo do Cinema novo se dividiu. Uma pequena parcela quer fazer cinema de arte, de conteúdo social e político, mas os outros se transformaram em autores de pornochanchadas e de filmes que chamo de “chanchadas chiques”. ampo do cinema. A crítica, por outro lado, como denunciou Chico Buarque de Holanda, tem que ser confiada a grandes intelectuais. Quem deveria ter feito a crítica de “A Idade da Terra” no GLOBO era Oto Lara Rezende, e, no “Jornal do Brasil”, Tristão de Athayde. Os grandes intelectuais devem julgar também o cinema, pois, em geral, é analisado por cronistas improvisados.

Por que você está muito magoado por causa das críticas feitas no Brasil a seu filme “A Idade da Terra”?

Acho que o meu último filme não estreou no Brasil, houve apenas uma pré-estréia. Embora a Embrafilme tenha apoiado o filme e o Celso Amorim se dedicado, da melhor forma possível, para que “A Idade da Terra” tivesse boa divulgação, os exibidores se recusaram a dar os mais importantes cinemas. Por isso, a Embrafilme só conseguiu programar o filme no Caruso, do Rio do Janeiro; no pior cinema de São Paulo, o Belas Artes; no Guarani, em Salvador. Na verdade, o filme ficou em cartaz três ou quatro semanas e foi visto por apenas 20 mil pessoas. Isso eu considero uma pré-estreia. Um filme da importância de “A Idade da Terra” deveria ser lançado em circuito nacional, em cem salas, ou então exibido na TV Globo, para que todo o povo brasileiro possa assistir. Os exibidores deram prioridade a um filme de segunda classe, “Pixote”, de Hector Babenco, que é uma coisa comercial. O povo tem direito a ver o meu filme. Além do mais, o filme sofreu um massacre inicial dos críticos, que se colocaram ao lado daqueles que me atacaram durante o Festival de Veneza, no ano passado. Queria aproveitar a oportunidade desta entrevista para pedir à Embrafilme que relance “A idade da Terra”.

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