Cenas de ‘Shadow’ têm jorros de sangue e adrenalina espetaculares
Entender o filme, de Zhang Yimou, é uma proposta estéril e, por isso, é melhor estabelecer uma relação sensorial com a obra
THALES DE MENEZES
Quem entrar no cinema para ver “Shadow” esperando por um filme de ação protagonizado por antigos guerreiros chineses, como o pôster e as fotos de divulgação podem insinuar, terá de esperar uma hora dentro da sala para se satisfazer. Em sua metade inicial, o longa é um drama de intrigas palacianas em imagens escuras, algo claustrofóbico e, ao mesmo tempo, encantador. Depois, é a hora das lutas.
Demorou para o filme chegar ao Brasil. Zhang Yimou lançou o longa em 2018, o que aumentou a lista de obras arrebatadoras do cineasta chinês. Já que as imagens de chuva têm destaque neste filme, cabe aqui a brincadeira de afirmar que elogiar o diretor é chover no molhado.
Um prêmio do júri em Cannes, um Urso de Ouro em Berlim, dois Leões de Ouro em Veneza e três indicações ao Oscar de melhor filme internacional já bastam como suas credenciais.
Entender o filme é uma proposta estéril. Compreender as reações aparentemente absurdas de alguns personagens e o significado de inúmeros rituais pode ser deixado de lado. O melhor é se relacionar sensorialmente com o filme.
Antes da trama, a estética guia o acompanhamento do longa. Se outros filmes do diretor são explosões coloridas deslumbrantes, aqui Zhang Yimou varia a saturação das cores, em muitos momentos reduzindo a imagem a preto, branco e cinza. A aplicação de coloridos mais fortes pauta os caminhos do roteiro, e a todo momento o resultado é belíssimo.
Os acontecimentos remetem à Era dos Três Reinos, no século 3º, época de divisões políticas e confrontos constantes na China. A disputa por uma região entre dois monarcas pode ser decidida em um duelo, anunciado no início da trama. Os dias que antecedem o embate exibem as relações entre o rei, ambicioso e violento, e o general que comanda seu Exército.
O monarca havia decidido manter relações cordiais com o reino vizinho, mas, sem sua autorização, o general convoca o duelo, no qual quer lutar. No palácio também estão duas personagens essenciais no roteiro, a princesa, irmã do rei, e a mulher do general. Como sempre em filmes de Zhang Yimou, as mulheres têm papel determinante.
Descrito assim, o enredo não seria tão intrincado, mas falta apresentar o fundamental na história –a existência das sombras.
Antecipando em séculos a noção de dublês ou mesmo de clones, a sociedade chinesa da época selecionava pessoas muito parecidas com nobres e figuras de destaque. Elas, as sombras, eram mantidas em porões ou cavernas, de onde saíam apenas para atuar como substitutos em determinadas ocasiões, notadamente situações de risco.
Zhang Yimou entrelaça o que acontece entre o general e o homem escolhido como sua sombra e faz isso sem a menor preocupação em deixar evidente durante todo o tempo quem é quem. Daí surge a grande estranheza do filme, que é também seu maior mérito.
Esse jogo de personagens é levado até a segunda parte do longa, que deve cativar sem misericórdia quem assiste às cenas de luta. Tudo fica muito distante das hoje manjadas coreografias que mostram guerreiros desafiando a gravidade ao flutuar no ar, recurso que foi celebrizado no blockbuster mundial “O Tigre e o Dragão“.
Câmeras e atores se envolvem de um modo único, num resultado inesperado de grande beleza. Um dos diferenciais desses combates reside nas armas usadas. Além de espadas e lanças, os lutadores têm também armas presas às mãos e, o mais inusitado, guarda-chuvas.
Objeto tão trivial ganha características mortais quando pode disparar lâminas ou servir como uma espada cega contra o rival. Zhang Yimou tomou muita liberdade criativa ao usar esse arsenal e também não respeitou tão fielmente a verdadeira ação das sombras na China antiga. Tudo em nome de fazer um filme bom.
Sua obra é bem mais do que isso. É espetacular, tanto nas intrincadas relações de poder quanto no jorro de sangue e adrenalina em seus combates antológicos. “Shadow” não foi feito para ser entendido, mas para proporcionar extremo prazer sensorial.