Para a China, nova iniciativa industrial dos EUA é declaração de guerra fria
Marcelo Ninio
O GLOBO
Se havia dúvidas em Pequim de que o mundo entrou numa nova guerra fria, parece que elas desapareceram com a aprovação nesta semana da maior iniciativa industrial da história dos Estados Unidos. O pacote de US$ 250 bilhões em apoio a setores tecnológicos estratégicos passou sob o argumento de que é preciso recuperar terreno na corrida econômica e tecnológica com a China. Mas o que ajudou a pavimentar o raro momento de união bipartidária foi a competição ideológica com Pequim, evocando os ares da disputa entre EUA e União Soviética que dividiu o mundo após a Segunda Guerra Mundial.
As diferenças entre aquela rivalidade e a atual são enormes, a começar pela integração da China à economia global, o que não acontecia com a União Soviética. O que há em comum, porém, além de um novo confronto entre superpotências, é a visão promovida por Washington de que o adversário representa uma ameaça não só à liderança americana, mas a todo o planeta. O senador republicano Todd Young, um dos co-autores do projeto, não economizou na retórica da guerra fria, diizendo que ele protegerá futuras gerações de verem “uma bandeira vermelha nas novas fronteiras”.
A China reagiu com indignação. Em um comunicado, o Parlamento chinês afirmou que a iniciativa expressa o “delírio paranóico de querer ser o único vencedor”. Wang Wenbin, porta-voz do Ministério das Relações Exteriores, disse que os EUA estavam vendo um “inimigo imaginário”.
Não é surpresa que o governo chinês tente se descolar da imagem ameaçadora propagada pelos EUA. Mas a postura agressiva do governo americano com a China, intensificada por Donald Trump e mantida por Joe Biden, é algo que intriga mesmo alguns insuspeitos aliados de Washington. Yossi Cohen, que acaba de deixar o cargo de chefe do Mossad, a lendária agência de espionagem de Israel, disse durante uma palestra na semana passada não entender o antagonismo de Washington com Pequim. Afinal, “a China não é nossa inimiga”, disse Cohen, questionando a pressão americana contra Pequim sobre a origem do coronavírus.
O curioso é que, ao mesmo tempo em que critica o modelo de governança econômica chinês, os EUA reproduzem por meio da nova legislação um certo espírito desse mesmo modelo, com a intervenção do Estado para apoiar indústrias consideradas cruciais para alavancar o país e até medidas específicas, como o investimento em “pólos tecnológicos regionais”, que parecem uma versão americana das Zonas Econômicas Especiais da China.
Do montante aprovado pelo projeto de lei, US$ 54 bilhões são destinados a aumentar a produção e pesquisa em semicondutores e telecomunicação, que estão no cerne da competição por sua importância na tecnologia moderna, de automóveis e eletrodomésticos a equipamentos militares. A aspiração de ganhar autossuficiência tecnológica, que está há anos no centro da estratégia econômica da China, passa a ganhar papel de destaque também na política dos EUA. Mas a preocupação não está só na briga entre as duas potências. A União Europeia anunciou a intenção de aumentar sua produção de semicondutores e buscar outros fornecedores, para não depender nem dos EUA nem da China.
A iniciativa aprovada pelo Senado americano deve acelerar a determinação da China em investir na sua própria indústria de tecnologia, me disse Shan Huang, diretor-executivo da Caixin, a mais respeitada revista de economia da China. Segundo ele, o valor do projeto de lei pode parecer astronômico, “mas em se tratando de pesquisa e desenvolvimento é uma gota no oceano”. Para ilustrar o que chama de oceano, ele conta que os fundos de investimentos público-privados apoiados pelo governo chinês (GGF, na sigla em inglês), administram um total de US$ 892 bilhões para apoiar start-ups que precisam de capital.
Além de indignação, o governo chinês fez questão de cutucar o rival, demonstrando suas dúvidas sobre o sucesso da empreitada americana. Demonizar a China “não irá reparar os profundos problemas políticos, sociais e econômicos que afligem os EUA há décadas” e ainda poderá causar prejuízos ao mundo ao perturbar as cadeias de suprimento e frear a inovação, disse o porta-voz Wang Wenbin.
Guerra de nervos à parte, não deixa de chamar atenção no país governado pelo Partido Comunista que a meca do capitalismo tenha optado por aumentar o papel do Estado.
— Não podemos subestimar o simbolismo dessa lei bipartidária. Em um sistema capitalista dirigido pelo mercado como o dos EUA, a expressão ‘política industrial’ é difícil de engolir, principalmente para os republicanos. O direcionamento do Estado vai colocar os princípios de mercado em banho-maria na guerra tecnológica entre os EUA e a China, o que definitivamente é uma raridade na economia de ‘laissez faire’ [anti-intervencionista].