Proposta da Câmara é retrocesso nas regras para inclusão de mulheres na política, dizem especialistas

Criação de pequena reserva de cadeiras para bancada feminina busca esvaziar cota de candidatas e de financiamento, afirmam Flávia Biroli e Luciana Lóssio

FOLHA DE S. PAULO
BRASÍLIA – A movimentação na Câmara dos Deputados para alterar as regras de cota para estímulo da participação das mulheres na política representará um retrocesso caso mantenha os pressupostos anunciados até o momento, avaliam as especialistas Flávia Biroli e Luciana Lóssio.

Em entrevista simultânea dada à Folha, por meio de videochamada, as duas criticam a proposta de criação de uma cota de 15% de cadeiras, sob o argumento de que ela é insuficiente e traz em seu bojo a tentativa dos partidos de esvaziar as cotas de candidatura, financiamento e propaganda para as mulheres, atualmente em 30%.

“Não nos façam passar essa vergonha. O Brasil já está na lanterninha no mundo, na nossa região, na representação política de mulheres”, diz Flávia, 46, que é doutora em História pela Unicamp, professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília e autora, entre outros, do livro Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil (Boitempo, 2018).

“Não podemos admitir nenhum tipo de retrocesso na legislação. O Parlamento tem que se somar aos avanços já implementados pelo Poder Judiciário”, afirma Lóssio, 46, ministra do Tribunal Superior Eleitoral de ​2011 a 2017.

Em março, as duas participaram da série de encontros virtuais que debateu a participação feminina na política brasileira, com o apoio da Folha.

A relatora da reforma política na Câmara, Renata Abreu (SP), que é presidente do Podemos, afirmou em entrevista à Folha que pretende adotar em seu parecer um percentual mínimo de cadeiras (possivelmente 15%), a começar das Câmaras Municipais, flexibilizando, por outro lado, a cota de candidatas (30%).

Na visão de vocês, há necessidade de o Congresso reservar uma cota de cadeiras para mulheres no Legislativo? 

(Flávia) Eu vou responder com uma pergunta: que cotas de assento? Como nós temos há 25 anos 30% de cotas eleitorais [de candidatas], então só faz sentido aprovar cota de assento partindo desse percentual, para que a gente possa ter no horizonte uma aproximação em relação à paridade, o que tem sido uma tendência na região e globalmente. Cotas de assento, em si, não são uma fórmula mágica.

A gente conhece pela história o fato de que os percentuais tendem a ser adotados como teto, os partidos lidam com eles como teto. Hoje temos 15% de mulheres na Câmara dos Deputados, um pouco mais de 16% nas Câmaras de vereadores e um percentual um pouquinho superior nas Assembleias Legislativas. Então, uma cota de assento de 15% representaria, na prática, um retrocesso em relação aos percentuais médios que temos.

(Luciana) Na legislação já temos a cota mínima de 30% de candidatas. Quantos partidos lançaram mais de 30% de candidaturas? Pouquíssimos. Esse fato já comprova que, de fato, esse piso vai virar teto.

Eu vou ser bem verdadeira. Eu sou contra a reserva de cadeiras. Nós temos uma legislação que trata de reserva de candidaturas que existe no Brasil há 26 anos. E ela foi criada para não dar certo. Eu te digo por que: qual era o mecanismo que a legislação eleitoral facultava aos partidos políticos para observar esse percentual? Não falava nada da destinação de recursos nem da propaganda.

Foi apenas em 2009 que a legislação trouxe a necessidade de destinar um percentual do dinheiro público que ele recebia, o Fundo Partidário, também o tempo que ele recebia para sua propaganda partidária. E qual era o percentual? 5% do dinheiro e 10% da visibilidade. A conta não fecha. Como a lei pode impor uma meta de 30% de reserva de candidatura e facultar aos partidos 5% do dinheiro?

Não tivemos ainda o incremento do modelo que adotamos, e que agora começou a funcionar em razão do aprimoramento do regime democrático, da nossa legislação, da decisão do Supremo Tribunal Federal que em 2018 interpretou a lei determinando pelo menos 30% de dinheiro e 30% de visibilidade às mulheres. Então é muito pouco tempo de efetividade dessa legislação.

Foi apenas em 2015 —eu estava no Tribunal Superior Eleitoral nesse julgamento e fui uma impulsionadora desse debate ali dentro— que o TSE decidiu quais os remédios jurídicos cabíveis para se insurgir contra candidaturas laranja. Em 2015, 20 anos depois. Só em 2016 tivemos os primeiros casos julgados na Justiça Eleitoral brasileira de candidaturas laranjas.

Se surgir uma cota de cadeiras agora de 15%, o que acontecerá na prática, na visão de vocês?

(Luciana) Se passar 30%, concordo, até seria favorável, mas eu sei que não passa 30%. Então é um retrocesso. Hoje se fala em 15%. Por que isso? Eles querem congelar o modelo atual.

O retrocesso que vocês apontam parte do pressuposto de que ao mesmo tempo em que será implantada uma cota baixa de cadeiras, as cotas de candidaturas e de financiamento serão reduzidas?

(Flávia) Exato. Ao contrário do que dizem os partidos, o que a gente tem de dados mostram que as mulheres têm buscado essa participação. As mulheres são cerca de 45% das pessoas filiadas a partidos políticos. Por que se filiariam se não tivessem interesse pela política partidária? Há respostas por parte do Judiciário importantes para legitimar essa participação. O que vem agora? Vem uma proposta de cotas de assento com percentuais muito baixos, que significam um retrocesso.

E aí vem o ponto. Tem uma conversa de que isso não significa que vai cair o financiamento para as mulheres. Só que a gente sabe que nesse processo esse financiamento vem de uma decisão do TSE em que o financiamento está atrelado ao mínimo de 30%. Uma vez que se acaba com as cotas eleitorais, não vai segurar o financiamento.

Os 30% não saíram da cabeça de ninguém maluco. Existe uma teoria chamada teoria da massa crítica, de que é preciso haver um mínimo de mulheres para que elas possam atuar, para que tenham voz e para que não sejam uma minoria muito vulnerável às formas de violência contra as mulheres na política. Agora, de onde surge os 15%? É o que a gente tem hoje. É para pôr um teto. É para limitar.

Quais são as mudanças ideais na visão de vocês? Ou não precisa mudar nada, tem que esperar o atual modelo surtir mais efeito?

(Luciana) Eu proporia uma mudança na busca da paridade, mantendo a reserva de 30% de candidaturas, financiamento e propaganda, mas depois aumentando [nas eleições subsequentes] para 40% e, depois, 50%. Isso é feito nas democracias mais consolidadas do mundo, quando se olha para Inglaterra, França, Alemanha, Suécia.

Lá há reserva de cota de gênero também, só que ela é voluntária. Varia de 30% a 50%. E os partidos reservam a cota de 30%, 40% ou 50% para angariar a simpatia do eleitor. Se a mulher representa no Brasil 52% do eleitorado, se ela não se faz representar, essa democracia não é como a sonhamos e compreendemos.

(Flávia) Concordo com a Luciana, mas acho que a gente já teria condições de partir para os 40% imediatamente. E queria acrescentar algumas coisas. Por que é tão importante que a gente tenha dispositivos de reserva de vagas para as mulheres? Porque a gente tem séculos de domínio masculino na política. As cotas são, também, um processo de aprendizado para os partidos, para aprender a ter um conjunto mais diverso de candidatos.

Para que isso aconteça, junto com esse aumento em direção aos 50%, a gente deve ter também uma adoção clara de legislação que determine paridade na direção dos partidos políticos e também, como no México, pro Judiciário e para o Senado [em 2020, o TSE respondeu a uma consulta afirmando ser possível a reserva de vaga de 30% de candidatas para a disputa dos órgãos de direção partidário, mas decidiu que punições ao descumprimento só serão aplicadas caso o tribunal entenda, posteriormente, haver omissão do Legislativo de aprovar lei nesse sentido].

E também é importante a presença de mulheres nas secretarias dos executivos municipal, estadual e nos ministérios. São elos fundamentais para as carreiras políticas. Quantos secretários viram prefeitos? Esse elo falta para as mulheres. Os prefeitos e governadores não indicam mulheres.

(Luciana) Eu acrescentaria à minha proposta também o alcance da paridade para os cargos majoritários. Se o cabeça de chapa é homem, o vice tem que ser mulher necessariamente, e vice-versa, como no México. É muito fácil implementar essa paridade.

Luiza Erundina, primeira prefeita de São Paulo, discursa para integrantes do Movimento Pró-Casa Popular, na praça Ramos de Azevedo, no centro da cidade, em 1991 Niels Andreas – 4.dez.1991/Folhapress/

E como coibir a prática dos partidos de lançar candidaturas laranjas? Vocês acham que a Justiça e a lei têm mecanismos suficientes?

(Luciana) Tem, a Justiça Eleitoral tem feito isso. E teve um caso recente no TSE, de um caso no Piauí. E veja a importância de termos mulheres no TSE e no Judiciário como um todo. Essa discussão de 2015 [sobre coibir as candidaturas laranjas] se iniciou oriunda de um processo de 2012, quando o TSE tinha maioria feminina. De 7 membros, 4 eram mulheres.

Mas vocês defendem alguma mudança legislação eleitoral?

(Luciana) Pode haver um aprimoramento. Inclusive há um projeto de lei tramitando da senadora Mailza Gomes [PP-AC, que estabelece um tipo penal próprio para punir com pena de até seis anos de prisão dirigentes partidários ou candidatos que promovam candidaturas laranja. Apresentado em março de 2019, o PL 1.541 está há dois anos estacionado na fase inicial de tramitação, a Comissão de Constituição e Justiça].

(Flávia) O aprimoramento pode vir na regulamentação da utilização desse mínimo de 30% de recursos. Nas eleições de 2020, a gente viu algo bem complicado: a utilização de recursos para chapas encabeçadas por homens. Tudo bem, tinha uma mulher como vice-prefeita, mas o fim para esses recursos é estabelecer uma correspondência entre recurso público e o mínimo de 30% de mulheres nas chapas para o Legislativo. Com isso, foi muito pequena a progressão das eleições de mulheres vereadoras, embora nas capitais tenha sido significativa.

(Luciana) Um exemplo claro foi a candidatura à Presidência da Marina Silva [em 2018]. Se jogar todos os 30% de recursos para a campanha dela, o partido [Rede] estaria atingindo essa decisão judicial? No meu entender, não. Não tem na legislação uma regra clara sobre como o partido tem que destinar esses recursos.

Qual diálogo vocês estão tendo com o Congresso e o Judiciário sobre essas propostas?

(Flávia) Existe maior abertura hoje por parte do TSE do que dentro do Congresso. O TSE tem apresentado, na figura de vários ministros, um compromisso com esse entendimento de que existe uma qualificação necessária da democracia por meio da garantia à participação das mulheres.

Já quando olhamos para o Congresso temos percebido que a lógica interna dos partidos tem uma forte efeito, inclusive sobre as mulheres parlamentares. Muito as mulheres têm falado representando não o interesse de ampliação da presença das mulheres na política, mas sim o interesse de manter a autonomia dos partidos. Tem parlamentares muito honestamente preocupadas com a representação de mulheres, mas também muito pressionadas por seus partidos. E tem parlamentares que não estão preocupadas com a representação de mulheres.

Quem são essas parlamentares?

(Flávia) A bancada feminina, em geral, é comprometida com a representação das mulheres. Tem exceções se manifestando publicamente, como a deputada Renata Abreu, que já disse várias vezes que é contra as cotas [em entrevista à Folha a deputada, que preside o Podemos, defendeu cota mínima de cadeiras, em contrapartida à flexibilização da cota de candidatas], e deputadas do PSL.

A extrema-direita tem se colocado contra desde o início. A gente participou de uma audiência pública em março de 2019 e foi o primeiro momento em que eu entendi que a gente tinha uma nova clivagem. Que a extrema-direita não conversava nem com a direita tradicional. A gente tem mulheres do PP, do DEM, do MDB, do PSD, que são comprometidas com a participação política das mulheres. E tem essa clivagem. A deputada Caroline de Toni [PSL-SC] tem projeto para acabar com a política de cotas e financiamento.

Qual o recado principal que vocês gostariam de dar ao Congresso nesse momento de discussão de reforma política?

(Flávia) Vou falar não só como especialista, mas como brasileira. Não nos façam passar essa vergonha. O Brasil já está na lanterninha no mundo, na nossa região, na representação política de mulheres. Nós não aceitamos retrocessos. É preciso ver como nós vamos avançar para garantir a representação política das mulheres. Isso é qualidade da democracia, pluralidade e liberdade de expressão.

(Luciana) Nós não podemos admitir nenhum tipo de retrocesso na legislação. O Parlamento tem que se somar aos avanços já implementados pelo Poder Judiciário nesses últimos anos para garantir uma maior representação feminina na política.

RAIO-X

Flávia Biroli

  • Doutora em História pela Unicamp e professora do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília
  • Presidenta da Associação Brasileira de Ciência Política (2018-2020)
  • Integrou o Grupo de Assessoras da Sociedade Civil da ONU Mulheres (2016-2017)
  • É autora, entre outros, de Gênero e Desigualdades: Limites da Democracia no Brasil (Boitempo, 2018)

Luciana Lóssio

  • Ministra do Tribunal Superior Eleitoral de 2011 a 2017
  • Primeira mulher indicada para o TSE na vaga reservada aos juristas
  • Ex-Presidente da Associação de Magistradas Eleitorais Ibero-Americanas (2016/2017)
  • Doutoranda em direito pela Universidade de Salamanca, na Espanha

A EVOLUÇÃO DA COTA DE GÊNERO NO BRASIL

1995
A Lei 9.100 estabelece que ao menos 20% das candidaturas de cada partido ou coligação deverão ser preenchidos por mulheres

1997
A Lei 9.504 estabelece que cada partido ou coligação deverá reservar o mínimo de 30% das candidaturas para as mulheres. Partidos descumprem a regra deixando vagas parte da cota destinada às mulheres.

2009
A Lei 12.034 obriga cada partido ou coligação a preencher o mínimo de 30% de mulheres na chapa. Também determinou a destinação de um percentual mínimo de recursos para políticas de capacitação e estímulo da participação das mulheres na política

2018
STF e TSE decidem que partidos têm que destinar ao menos 30% dos recursos públicos dos fundos eleitoral e partidário e do tempo de propaganda às mulheres candidatas.

PARLAMENTARES ORIENTAM PRÉ-CANDIDATAS

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