Mais de 50 mil mortes no Rio: As cartas de parentes para quem partiu com Covid-19

Nessas linhas, eles contam novidades que gostariam de dividir com os familiares, revelam o que não deu tempo de conversar e principalmente demonstram saudades

Famílias escrevem cartas que gostariam de entregar para os entes que morreram da Covid-19 no Rio Foto: Editoria arteFamílias escrevem cartas que gostariam de entregar para os entes que morreram da Covid-19 no Rio Foto: Editoria arte

O GLOBO
RIO DE JANEIRO — Após mais de um ano da pandemia da Covid-19, foram confirmados, nesta quinta-feira, mais 226 óbitos pela doença no Rio de Janeiro, que ultrapassou a trágica marca de 50 mil mortes. São 50.125 vidas interrompidas desde o dia 17 de março de 2020, quando o estado registrou a perda da primeira para o novo coronavírus. Por trás de cada número, há histórias de famílias destruídas. São pessoas que se foram, deixando filhos, pais, netos, irmãos, amigos e milhares de recordações, que agora vivem na memória de cada família.

Para homenageá-las, O GLOBO pediu para que parentes e amigos de pessoas que morreram de Covid-19 escrevessem cartas que gostariam de entregar para as vítimas queridas que foram levadas pela doença. Nestas linhas, eles contam novidades que gostariam de dividir com quem partiu, revelam o que não deu tempo de conversar, declaram seu amor e, principalmente, demonstram suas saudades.

‘Posso ver o seu sorriso’

Carta para Nicette Bruno, 87 anos
A atriz Vanessa Goulart e sua vó Nicette Bruno, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoalA atriz Vanessa Goulart e sua vó Nicette Bruno, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoal

Vó,

Que saudade! Quero te contar tantas coisas. Como você faz falta, seu sorriso, sua energia, sua luz.

Sempre penso em você com muito amor e não poderia ser diferente, esse foi o rastro que deixou.

“Posso ver o seu sorriso ao saber que a família não para de crescer”

VANESSA GOULART
Neta da atriz Nicette Bruno

Mamãe deu um susto na gente. E que susto! Mas já está de volta, renascida, esbanjando força de vontade e trazendo uma mensagem de esperança. Por mais que a gente não entenda, existe um equilíbrio e não nos falta confiança.

A Paulinha tá grávida de novo! Posso ver o seu sorriso ao saber que a família não para de crescer.

Você está sempre conosco, vó! Em nossos corações, em nossos pensamentos. Você nos ensinou pelo exemplo, nunca com agressividade, nunca com imposições, sempre com doçura e com um amor maior que tudo.

O tempo pode passar, as coisas podem mudar mas eu sempre serei a companheirinha da vovó!

Te amo para sempre

A atriz Vanessa Goulart e sua avó Nicette Bruno Foto: Arquivo pessoalA atriz Vanessa Goulart e sua avó Nicette Bruno Foto: Arquivo pessoal

‘Um mês’

Carta para Jéssica Victorino, 29 anos
A estudante Jéssica Victorino Foto: Arquivo pessoal
A estudante Jéssica Victorino Foto: Arquivo pessoal

Um mês.

A dor é completamente surreal e a melhor hora do dia continua sendo quando a minha energia se exaure com a chegada do sono (às vezes de dia, outras de noite).

Os jogos de computador, que foram os meus (e seus em menor quantidade) anestésicos pela maior parte da minha vida, já não são suficientes.

Tudo é sem graça. Ocasionalmente, sai uma risada ao conversar com os amigos, mas após poucos segundos a realidade me cutuca. As trivialidades cotidianas já não importam; não faz mais diferença se beberam toda a água das jarras da geladeira e não reencheram ou se acertamos por comprar um melão muito doce no supermercado (que você comia mesmo falando que não gostava de melão, hahaha).

“A dor só aumenta. O amor por você também”

JOÃO BERNARDO
Viúvo de Jéssica Victorino

O conceito de eternidade se contorce da maneira mais bizarra possível. Num primeiro momento, a ilusão de que viveremos para sempre. No outro, a noção de que não veremos mais uma pessoa que amamos incondicionalmente. Para sempre ou, pelo menos, até chegarmos ao “outro lado”.

A mistura da dor da perda, com o arrependimento de não ter aproveitado o nosso tempo da melhor maneira possível, uma pitada de culpa e a revolta pela sensação de incompletude da sua vida é o mais amargo dos sabores.

João Bernardo com sua esposa Jéssica Foto: Arquivo pessoalJoão Bernardo com sua esposa Jéssica Foto: Arquivo pessoal

A dor só aumenta. O amor por você também. Apenas hoje, colocando toda a nossa história em um quadro e analisando-o bem, eu consegui ter uma dimensão do tanto que você gostou de mim. Hoje eu entendo o porquê de você sempre me responder um “eu te amo” com um “eu te amo mais”. Você estava certa.

Independente de como as coisas vão acontecer no tempo que me resta aqui, tempo nenhum vai sequer borrar o que sinto por você.

Te amo com todo o meu ser.

 

‘O trem’

Carta para Paulo Constantino, 79 anos
Paulo Constantino, de 79 anos, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoal
Paulo Constantino, de 79 anos, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoal

Oi pai! Tudo bem?

Ao longo da viagem, desde o dia em que desembarcou, o trem tentou descarrilhar algumas vezes, mas seguimos firmes. Mamãe ficou bem, entendeu que aquela seria a sua estação. Apenas um pouco triste, pois não conseguiu dar o último adeus.

Ah, a novidade é agora você tem dois netos: além da menina dos seus olhos (que continua linda, crescendo cada vez mais), embarcou no trem o Arthur. Lindo e com o sorriso que lembra o seu (na verdade tudo nele lembra o senhor).

“A novidade é agora você tem dois netos: além da menina dos seus olhos (que continua linda, crescendo cada vez mais), embarcou no trem o Arthur”

ANA PAULA FAGUNDES
Filha de Paulo Constantino

Minha mãe manda dizer que conseguiu fazer a cirurgia da catarata, e continua reclamando de suas tralhas na gaveta (que não conseguiu se desfazer, pois tudo lembra você). Babando os netos, segue firme e com muitas saudades.

Toda manhã, ao assistir ao Mais Você, minha irmã Cristiane lembra o senhor pedindo para que anotasse a receita para ser feita no final de semana. Diz que sente sua falta, mas sabe que o senhor está bem.

Junior, diz que gostaria que estivesse aqui para conhecer Arthur, e ver o quanto é esperto, saudável, sorridente e que puxou você. Ele adora música e adora tocar pandeiro. Também sente muito a sua falta.

Sua princesa Ana Gabriela está enorme, continua “papa tudo”, inteligente e amiga da minha mãe. Ela sente a sua falta e vive dizendo: se meu vovô estivesse aqui, estaria me defendendo.

Sentimos sua falta, e te amaremos eternamente

A família de Paulo Constantino, 79 anos Foto: Arquivo pessoalA família de Paulo Constantino, 79 anos Foto: Arquivo pessoal

 

‘Os encontros no ponto de táxi’

Carta para Salatiel Soares Filho, 66 anos
Laisa Helena e seu pai Salatiel Soares, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoalLaisa Helena e seu pai Salatiel Soares, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoal

Talvez as pessoas não entendam a nossa ligação. Independentemente do que passamos, você tem um significado imenso na minha vida.

Papitinho, tive uma infância incrível ao seu lado – não precisávamos de muito para sermos felizes. Naquela época, se deixassem, eu teria ido todos os dias para o trabalho com você, ficaria sentada naquele motor do ônibus por horas, sem nem me importar em acordar às 4h. Tudo isso só para ficar perto de você. Não é à toa que eu era chamada de peidinho do Tiele (risos).

Lembro quando pegávamos uma bicicleta e rodávamos os bairros — eu nem ligava se já estava dolorida de ficar sentada no quadro da bicicleta. Quando chegávamos em casa, começava nossa demonstração de amor, que era através de uma briga de lutinha (até você pedir arrego para minha mãe!). Vivíamos no nosso mundo singular. E foi incrível.

“Não fomos perfeitos, mas vivemos da nossa forma, errando e acertando. Tivemos um amor inexplicável”

LAÍSA HELENA
Filha de Salatiel Soares Filho

E aí, coisas da vida nos afastaram. A Tati, minha irmã, sabia o quanto eu sentia sua falta. Ela também sentia. Em nossa última conversa, falamos sobre a relação com o senhor. O papo durou horas. Choramos juntas e tentamos nos reconfortar. Quando ela partiu, sei que você sentiu que poderia ter estado mais próximo de nós.

Lembro-me, como se fosse hoje, do áudio que você me enviou: “Laisa, papai te ama”. Foi incrível ouvir aquilo. A Tati até me zombava por eu ter ficado tão boba. Tentei colocar esse áudio como toque do meu celular, mas infelizmente não consegui e acabei por perdê-lo.

Nossa reaproximação só aconteceu com a partida de Tati e, mais uma vez, voltamos a viver no nosso mundinho, com encontros no seu ponto de táxi. Aquelas eram as melhores horas. Ali falávamos sobre o cartola e o quanto você era muito ruinzinho (risos). Ali também falávamos do Flamengo, nosso time de coração. Aliás, obrigada por me fazer torcedora do Flamengo. Mas, sem dúvida, o melhor dia desses últimos anos foi você ter ido à minha formatura. Foi incrível olhar lá de longe e ver você! Lembro que, ao convidá-lo, você disse que não iria, pois não tinha roupa e blá-blá-blá. Senti muito; afinal, eu não queria saber como você estaria vestido, eu só queria a sua presença… E você me brindou com ela e ainda me deu a satisfação de saber que você amou estar lá comigo!

Papitinho, fico pensando no nosso sofrimento diário: nosso corpo acaba por se abalar quando não externamos as emoções. Você não colocava sua dor para fora, raramente a demonstrava. Lembro-me, no entanto, de uma vez em que você externou todo o seu sofrer: foi quando a Tati estava no hospital e você queria brigar com o motorista de ônibus que fechou seu carro. A dor de pai transformou-o e viram você de um jeito como nunca antes.

Ah, papitinho… Como era bom poder levar um lanchinho para você à noite e vê-lo sempre preocupado em dividir o lanche com os amigos, que se tornaram sua família e que me fazem sentir superacolhida.

Lembro do nosso último encontro, que foi um dos mais longos. Cheguei em casa chateada por você não ter ido me buscar; afinal, essa era uma forma de ficarmos mais perto. A chateação, no entanto, acabou no mesmo instante (risos), pois eu sou mais parecida com você do que imagino (e não é só na aparência).

Não fomos perfeitos, mas vivemos da nossa forma, errando e acertando. Tivemos um amor inexplicável.

Pai, para ser sincera, está doendo. É uma dor que não sei explicar. Por dentro, é como se eu ainda pudesse ir até seu ponto para vê-lo.

Depois que você foi internado e não te vi mais, sonhei com você. Nesse sonho, você perguntava pela Tati, pois, quando tudo aconteceu com ela, você me falou que queria ter estado mais perto de nós. Agora você está aí com ela. Agora sei que ela não está mais sozinha: vocês estão cuidando um do outro. Não sei por que esses foram os planos de Deus, mas entrego e confio.

Obrigada por ter sido meu papitinho, meu paizinho, meu herói (é assim que salvei seu contato no meu telefone). Obrigada por ser esse homem íntegro.

Agora que você está perto da nossa nina, olhe por mim, cuide de nós.

Amo você, meu veinho, aquele que de longe eu reconhecia pelo andar…
Laisa Helena e seu pai Salatiel Soares, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoalLaisa Helena e seu pai Salatiel Soares, vítima da Covid-19 Foto: Arquivo pessoal

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