Como era linda a minha voz!
Jota Menon
Dizem que pra quem está de barriga cheia a goiaba sempre terá um bicho. É aquela história da mesa farta onde alguém sempre encontra algum prato que “não come de jeito nenhum”, enquanto para a mesa que falta esse prato seria banquete. Em síntese, esses saberes populares talvez expliquem a teoria de que nós, seres humanos, só damos valor em determinadas coisas quando não as temos ou quando as perdemos.
Foi assim com a história da minha voz.
Eu sempre a considerei um tanto quanto desagradável.
Anasalada, até por uma rinite que me acompanha desde tenra idade, nunca acreditei que a voz com que nasci pudesse me proporcionar a realização de um sonho de infância: ser locutor de rádio.
Ah! Quantas e quantas vezes me vi sonhando acordado, em casa, no trabalho, pelas ruas da pequena cidade, apresentando um programa sertanejo ao estilo do Siqueira Martins, meu ídolo de infância e de adolescência vividas em Rancho Alegre, na Região Norte Pioneiro, no Estado do Paraná.
Aliás, essa paixão pelo radialista, que apresentava seu programa na Rádio Alvorada de Londrina, já deixava bem clara minha predileção por seguir uma carreira ligada à cultura, às artes, à comunicação.
Digo isto porque o quesito que mais me encantava no modo do Siqueira Martins apresentar o programa “caipira” era o seu Português, que eu considerava corretíssimo e que contrariava a tradição da época que era de apresentador de programas “caipiras” terem que, obrigatoriamente, atropelar por completo a Língua Pátria.
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Este escriba e o locutor Rudimar Lautert comandando o programa “Primeira Hora” na Rádio Cidade em 2017 _ Reprodução Facebook
“Quando eu crescer quero ser igual o Siqueira. Vou fazer um programa de rádio inspirado no seu modo de se comunicar com os seus ouvintes”, pensava eu, enquanto comia uma marmita de boia-fria no do roçado sob Sol escaldante do Verão paranaense.
Quis o destino que me fizesse um homem da Comunicação Social.
Não me tornei radialista de profissão, mas, me formei jornalista. Um pouco por não me achar apto a inundar o imaginário popular comandando um programa “caipira” com a minha voz fanhosa, outro pouco, falsa modéstia à parte, por acreditar em mim mesmo como uma pessoa com potencial para contribuir com a sociedade informando-a de forma clara e até mesmo formando opinião junto aos leitores dos jornais pelos quais um dia eu passaria.
Mas, passou foi o tempo que não para e ganhei experiência no mundo da comunicação e descobri que nem todos os locutores do mundo tinham a voz do meu ídolo de infância. Pelo contrário, com a modernização do rádio, os ouvintes passaram a avaliar mais a qualidade dos programas radiofônicos do que a voz de quem os apresentava e essa nova realidade me impeliu a produzir e apresentar um programa de rádio chamado “O Sertão Também Tem Saudade”.
Foi uma experiência curta. Foram menos de 10 anos, mas foi tempo bastante para que o programa ganhasse alguma projeção a ponto de ser veiculado em mais de uma dezena de emissoras de rádio em Mato Grosso do Sul, no Paraná e até numa rádio do Paraguai, a FM Alto Paraguay 99,9, da cidade de Carmelo Peralta.
Curioso que, mesmo com uma audiência considerável onde o programa era veiculado, eu continuava me penitenciando pela minha voz anasalada, por mim classificada como inadequada para um programa com aquele esmero com que “O Sertão…” era produzido.
Eu achava minha voz feia demais para ser motivo do meu sucesso e acreditava piamente que a audiência se justificava unicamente pela produção refinada do programa!
Aos 56 anos, os médicos diagnosticaram em mim uma Neoplasia Maligna (eufemismo para câncer) entre a laringe e as cordas vocais, o que motivou a realização de uma cirurgia delicada chamada “Laringectomia Total com Esvaziamento Cervical”.
Depois de oito horas de cirurgia, saí do Centro Cirúrgico 100% mudo. Sem a laringe e sem as cordas vocais, nem som de choro me era possível emitir.
Mas, graças ao apoio que tive da família, dos colegas de trabalho e dos muitos amigos, já saí do hospital com uma prótese fonatória, de fabricação sueca, instalada num estoma aberto logo abaixo da garganta. O estoma – aquele buraquinho que fica embaixo do queixo do (a) ostomizado (a)* – é também as minhas vias aéreas, pois, com a cirurgia a respiração oral e nasal deixou de existir.
Mas, a questão aqui é a voz!
Depois de cerca de dois meses me comunicando através da escrita e de algumas tentativas – a maioria delas frustradas – por mímica e sinais, foram instalados adesivo e filtro que me permitiram emitir sons que se equiparam à voz humana e me permitem comunicar com as pessoas com quem convivo. É uma voz mais ou menos parecida com a voz do Pato Donald, célebre personagem de Walt Disney.
E hoje, mexendo meus arquivos no microcomputador, encontrei a pasta “O Sertão Também Tem Saudade” e nela constatei arquivados cerca de 40 edições do programa que foi veiculado em rádios daqui do Estado, do Paraná e do Paraguai.
Meio relutante resolvi ouvir um dos programas até porque sempre programei neles o que considerava como o melhor da música sertaneja raiz e ouvir músicas de boa qualidade sempre me fez bem.
E, ouvindo o programa produzido em 2017 em homenagem do Dia do Trabalhador, foi então que duas lágrimas marotas insistiram em molhar as faces do meu rosto porque nesse momento eu me dei conta de uma verdade que me remete ao início desse relato: COMO ERA LINDA A MINHA VOZ!
* OSTOMIZADA é aquela pessoa que precisou passar por uma intervenção cirúrgica para fazer no corpo uma abertura ou caminho alternativo de comunicação com o meio exterior para a saída de fezes ou urina, assim como auxiliar na respiração ou na alimentação, meu caso. Essa abertura chama-se ESTOMA.