Viagem rodoviária mais longa do mundo reúne aventura e sonhos até o outro lado dos Andes
A rota começa no Rio de Janeiro, tem 6.307 quilômetros até Lima e é a mais longa do mundo, segundo a empresa que faz o percurso. A reportagem da Folha embarcou em 28 de setembro, uma quinta-feira fria em São Paulo, para registrar o percurso que liga o leste ao oeste da América do Sul. O destino final é apenas um detalhe distante quando se tem pela frente os 5.859 quilômetros que separam a capital paulista e Lima.
O primeiro desafio da viagem foi fazer caber toda a bagagem dos passageiros que embarcaram em São Paulo. No ônibus, cada um pode levar até 50 quilos no bagageiro e mais 10 quilos na bagagem de mão. Muitos aproveitam desta vantagem em relação ao limite das companhias aéreas (23 quilos) para levar a mudança.
Foi assim com o casal de costureiros peruanos Gladys Carrión Guadalupe, 53, e Walter Llacza, 65. Eles faziam a viagem de volta a Lima após 12 anos em São Paulo. Na bagagem estavam dez máquinas de costura usadas, muitas caixas, um teclado, um violino e o desejo de continuar trabalhando perto da família.
“Decidimos voltar porque meus quatro filhos estão lá, no Peru. E quero ficar ao lado do meu pai, que tem 95 anos. Eu fico um pouco triste de deixar São Paulo porque o Brasil é um país bom, com muitas oportunidades, que recebe bem o estrangeiro”, disse Llacza.
Do total de 25 passageiros, apenas sete eram brasileiros, incluindo a dupla de reportagem da Folha. Havia quatro colombianos, duas venezuelanas, um nigeriano e os demais, peruanos. Entre os brasileiros, quatro embarcaram no Rio de Janeiro e fizeram a viagem pela aventura de cruzar a América do Sul de leste a oeste. Eram os únicos que estavam a passeio.
O administrador de empresas Ailton Correa, 58, e o sogro, o empresário Antônio Hilário Gonçalves, 75, começaram a viagem um pouco antes. Moradores de Pedro Leopoldo, na Grande Belo Horizonte, enfrentaram nove horas de ônibus até o Rio de Janeiro, de onde partiram para Lima.
Desde 2014, todos os anos eles fazem uma viagem a turismo, de carro, para algum país da América do Sul. Ao saberem da rota até Lima, decidiram que seria a oportunidade de visitar o Peru, um dos três países da região que ainda não conheciam. “A ideia é fazer a aventura completa. A gente gosta é da estrada. A diferença é que desta vez vamos de ônibus”, afirmou Correa.
MOTORISTAS APRESSAM PARADAS PARA NÃO ATRASAR NA FRONTEIRA
Ainda tentando se adaptar à nova realidade de espaço dentro do ônibus, os passageiros foram aos poucos conhecendo a rotina de paradas ao longo da viagem. Eram três por dia, uma para cada refeição: café da manhã, almoço e jantar. Em uma delas encaixava o banho. Já o local e horário de cada uma era uma incógnita.
Nas paradas, quando o banheiro tinha chuveiro, eram apenas dois para homens e dois para mulheres. E havia algumas surpresas. Na primeira parada em que a reportagem da Folha tomou banho, por exemplo, em Jaciara (MT), a água era fria e havia besouros e grilos, além de sapos do lado de fora. Tudo muito comum no interior do país, mas assusta quem é do concreto e do asfalto. Já em Cusco, havia dois chuveiros para todos, passageiros e motoristas.
A rapidez para fazer as necessidades fisiológicas, tomar banho e comer nestes momentos se tornou uma prática pela pressão dos motoristas. Já escovar os dentes era um luxo. Chicletes e balas foram a alternativa.
Segundo o motorista Jonathan Sousa da Silva, 28, a pressa era para evitar atrasos na chegada ao posto de imigração da Polícia Federal em Assis Brasil, no Acre, última cidade brasileira antes de cruzar a fronteira com o Peru. O atendimento no posto é feito até as 17h. O objetivo era chegar ao menos duas horas antes, para que todos os passageiros pudessem fazer os trâmites de saída do país.
“A gente tem que seguir esse cronograma. Caso ocorra atraso e chegamos [no posto de imigração] além das 17h, corre o risco de o ônibus ficar lá a noite todinha para ser atendido só no dia seguinte. Por isso, a gente tem que tentar fazer as paradas o mais breve possível”, afirmou.
Jonathan dividiu o volante do ônibus com Josué Ribeiro Silva, 40, até Rio Branco, onde aconteceu a troca de motoristas. Durante o percurso, cada um dirigiu quatro horas enquanto o outro descansava. Assim se revezavam ao longo dos três primeiros dias, dormindo em um pequeno espaço na parte inferior do ônibus.
“Trabalhamos uma semana e folgamos outra. Assim, fazemos duas viagens por mês. Já me acostumei com essa rotina”, afirmou Josué.
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E a pressão dos motoristas pelo horário deu resultado. O ônibus chegou a Assis Brasil (AC) às 15h35 de 1º de outubro, um domingo. Todos os passageiros desceram para registrar a saída do Brasil. Uma hora depois, já estávamos em Iñapari, cidade peruana na fronteira com o Brasil.
No posto de imigração peruano, todos os passageiros desceram novamente, apresentaram documentos e receberam autorização para entrar no Peru. Brasileiros precisam apenas de RG para fazer a imigração. Alguns aproveitaram para trocar reais por soles, a moeda peruana, nas casas de câmbio que ficam em frente ao posto de imigração. É preciso R$ 1,30 para comprar 1 nuevo sol.
Na retomada da viagem, em solo peruano, os passageiros já eram amigos e solidários. Quando não estavam conversando, passavam o tempo lendo livros ou usando o celular para ouvir música, ver séries ou brincar com joguinhos. Nas interações, ofereceram bolachas, bebidas (inclusive alcoólicas, o que era proibido) e remédios.
Mudanças de temperatura foram comuns ao longo do percurso. Enquanto no Centro-Oeste e Norte do Brasil era quente e úmido, no alto da cordilheira era gelado, chegando a -2° C. Dentro do ônibus, apesar do controle da temperatura, as noites eram muito frias, o que motivou um dos passageiros a cortar o seu cobertor ao meio e dar uma metade a outro que tinha deixado a sua manta na mala.
“Minha manta era grande e sabia que não ia passar frio se cortasse ao meio. Então eu cortei e dei metade ao Maurício”, afirmou o enfermeiro brasileiro Osmar Fernandes Alves, 59, que fazia a viagem que considerou “fora da casinha em busca de outros caminhos”.
“O Osmar ficou com pena de mim e ofereceu metade da manta. Olha que gesto de espontaneidade! Fiquei até constrangido de falar não”, disse o aposentado Maurício Gomes de Souza, 69, também brasileiro.
Eles se conheceram no ônibus e afirmaram que a experiência que viveram nos cinco dias na estrada seria impossível de experimentar se a viagem fosse de avião. “Essa confraternização é impagável. Não conhecia ninguém e já conversei um bocado de coisas com várias pessoas. A única coisa que não estou gostando é que não posso dirigir”, disse Maurício, que costuma viajar de carro pelo país.
Outro momento de solidariedade ocorreu quando muitos passageiros passaram mal por causa da altitude na cordilheira dos Andes. Uns cuidaram dos outros, oferecendo remédio, água ou apenas uma palavra de conforto. Enjoo, tontura, dor de cabeça e vômito foram alguns dos efeitos do ar rarefeito.
Esses passageiros tiveram ainda o auxílio do motorista e médico Gustavo Rafael Gil Ycena, 43, um dos três que fazem o trecho de Rio Branco até Lima. Venezuelano, ele deixou o país natal há sete anos devido à crise econômica e política. Na viagem, quando necessário, Gustavo indicou medicação para enjoo. No ônibus também havia oxigênio, caso alguém precisasse.
RONCO, MÚSICA E PORTA RANGENDO ATRAPALHAM O SONO
Dormir foi o maior de todos os perrengues da viagem, e os motivos foram vários. Apesar de o ônibus ser de categoria semileito, as poltronas eram apertadas e com pouco espaço entre elas, tornando impossível esticar as pernas; alguns passageiros roncavam enquanto outros ouviam música sem fone; a porta do banheiro ora rangia ora batia; o asfalto ruim da estrada no trecho entre Rondônia e Acre fazia o ônibus inteiro trepidar; e estava frio, muito frio, nas duas últimas noites na cordilheira.
Num piscar de olhos o dia clareava e uma nova paisagem surgia pela janela a cada manhã. A primeira foi a travessia sobre o rio Paraná, em uma ponte de cerca de 2,5 quilômetros de extensão, na divisa entre São Paulo e Mato Grosso do Sul.
Já em Rondônia, após quilômetros de pasto e plantações, era possível ver algumas gigantes castanheiras, resistentes e solitárias no meio do nada.
No entanto, nada se comparou ao primeiro amanhecer no alto dos Andes. Já era manhã de 2 de outubro quando o ônibus chegou a Abra Pirhuayani, um dos picos mais altos da cordilheira, com 4.725 metros. De lá, com céu limpo e azul, era possível ver ao longe outro conjunto de montanhas com picos nevados. Uma vista de encher os olhos enquanto o nariz e as mãos congelavam com o frio e o vento, pois o termômetro marcava 8°C.
Foi com essa vista que o ônibus parou um pouco mais adiante para o primeiro café da manhã em terras andinas. E esqueça o café com leite e o pão na chapa. Sim, havia café, mas era mais aguado do que um chá preto. Para acompanhar, truta frita, sanduíche de carne de alpaca, caldo de cordeiro ou de galinha e pão com queijo frito. Tudo acompanhado por diferentes tipos de batatas, nada parecidas com as do Brasil.
Quem se deliciou e fez um banquete matutino foi o casal de costureiros peruanos. “Há 12 anos que eu não comia essa batata com caldo de cordeiro”, disse Gladys.
Após subir a um dos picos dos Andes, o ônibus seguiu viagem descendo pela rodovia Interoceânica Sul. Apesar do asfalto em perfeito estado, as curvas e os desfiladeiros fazem desse trecho uma espécie de montanha-russa peruana.
À medida que o ônibus subia e descia pela cordilheira, a paisagem mudava. No início, havia montanhas com floresta tropical, depois vieram a vegetação rasteira e os picos nevados. Após passar por Cusco, apareceram montes áridos com vales profundos. Nesse trecho, a velocidade máxima do ônibus era de 20 km/h e em algumas curvas o motorista precisava parar, buzinar e esperar para ver se havia alguém na direção contrária.
“O ônibus é grande e ocupa as duas faixas da estrada no momento da curva. Temos que dirigir com muita prudência porque não conseguimos ver se há outro veículo na direção contrária”, afirmou o motorista Sandro Nascimento Lone, 45, que fez o trecho de Rio Branco até Lima.
Após mais uma noite mal dormida, o amanhecer do último dia ainda nos Andes foi mais um espetáculo da natureza. Os primeiros raios do sol, por volta das 5h, apresentavam a silhueta de outro conjunto de montanhas com formato quase lunar. Era um contraste de sombra e luz formado pelo sol ainda com pouca intensidade sobre as curvas dos montes, já não tão altos. E a cada curva esse contraste se apresentava mais exuberante e perigoso.
Nesse pedaço da estrada, já não havia muretas de segurança, e um descuido do motorista poderia ser fatal.
Antes de a viagem chegar ao destino final, os passageiros ainda puderam contemplar um dos mistérios do Peru: as linhas de Nazca, imensos geoglifos feitos no chão do deserto do país.
Em um mirante às margens da rodovia Panamericana entre Nazca e Ica foi possível ver ao menos três desenhos: o lagarto, as mãos e a árvore. Para subir no mirante paga-se o equivalente a R$ 8.
A vista incrível das linhas de Nazca ainda não era o fim da viagem. Os últimos 300 quilômetros foram percorridos em meio a um árido deserto banhado pelo oceano Pacífico. Depois vieram as praias praticamente desertas até, enfim, o trânsito confuso e barulhento de Lima. Era 16h15 (horário local) de terça-feira, 3 de outubro.
Apesar do cansaço, da privação de sono, da falta de um banho e de um café quente, a viagem foi uma das maiores experiências vividas pelos passageiros nas 116 horas dentro do ônibus. “Houve descontração, conhecemos pessoas com histórias de vida muito diferentes e as paisagens do caminho foram surpreendentes. Foi além das minhas expectativas”, afirmou Ailton. E faria de novo? “Não, essa não dá para repetir”, disse.
GUINNESS MONITORA TÍTULO DE VIAGEM MAIS LONGA DO MUNDO
O título de viagem rodoviária mais longa do mundo pertencia à Ormeño, empresa peruana que fazia a rota Rio-Lima, mas faliu durante a pandemia. A empresa percorria outro trecho ainda mais longo, até Bogotá (Colômbia), e o trajeto de 14 mil quilômetros em dez dias foi extinto.
Em março deste ano a Trans Acreana assumiu a rota Rio-Lima. A empresa brasileira afirma que faz a viagem de ônibus mais longa do mundo, e não deu detalhes sobre como e quem concedeu o título.
O Guinness diz que atualmente monitora candidatos ao título de rota de ônibus mais longa do mundo. No entanto, não há nenhum recordista no banco de dados do livro dos recordes. Segundo o Guinness, a Ormeño não é mais a recordista.
Por enquanto, a cada 15 dias um ônibus sai do Brasil com destino ao Peru e outro faz o caminho inverso. O preço promocional da passagem é de R$ 1.000, com início no Rio ou de São Paulo.