— Foi um desespero. Os irmãos dela se bateram nas paredes. Mas tem que se conformar, não tem outro jeito — diz Simão Tupã Retã Vilialva, pai da adolescente.
Nesta semana, o caso de uma menina indígena de 11 anos vítima de estupro coletivo e morta ao ser jogada de uma pedreira em Dourados (MS) chocou o país. O tio dela, que participou das agressões, foi encontrado morto dentro do presídio estadual.
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Simão diz que há usuários de drogas dentro da aldeia e que a vida ali é difícil. Descreve onde mora como “um lugar pelado, onde não tem quase mata, não tem nada”. Até mesmo a água potável é escassa. Mesmo assim, o número de indígenas que vive ali chega perto de mil.
— O suicídio é um sintoma de várias causas. Os jovens enfrentam preconceito e racismo nas escolas e nas cidades do entorno. Não conseguem emprego, são chamados de bugres. As comunidades indígenas vivem na miséria, carentes de tudo. Há agressões, tentativas de assassinato, alcoolismo e drogas — afirma a procuradora Indira Pinheiro, que integra um grupo de autoridades que tenta buscar soluções para o suicídio de adolescentes e jovens indígenas.
Paralisação de estudos para demarcação de territórios, insegurança jurídica das terras indígenas já ocupadas e o abandono são também pano de fundo para a tragédia que se abate no Paraná.
Muitas crianças sequer vão às escolas nas cidades próximas porque não têm roupa, cadernos ou livro como as demais. Os adultos ganham a vida com a venda de artesanato.
Roberto Liebgott, coordenador do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) na região Sul, afirma que os avás-guaranis são exímios artesãos de balaios de taquara ou cipó e esculturas em madeira, a maioria de bichos da região.
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Aldeia Cyurva Guarani, em Santa Helena (PR): Lideranças locais promovem encontro com pajés e rezadores de outras aldeias para ajudar jovens indígenas. Foto: Divulgação/Ministerio Público Federal no Paraná
Rituais em declínio
Na cultura indígena, no início da adolescência há rituais para marcar a entrada na fase adulta, que compreende principalmente cuidar da terra para tirar dela o sustento. A fase adulta chega, mas não a terra para que possam cultivar.
Okaju diz que grupos evangélicos entram nas aldeias levando água e comida, acompanhadas de oração. Em troca da ajuda, diz ele, exigem o dízimo dos que conseguem trabalho e até dos inscritos no Bolsa Família.
Ao contrário do cacique, que pode ser trocado, o pajé é um ser que tem o dom da cura, premonição e previsão. E não tem sido fácil surgir rezadores como eles, explica Okaju.
— Quando não se pratica essa cultura, a tendência é perdê-la. E os jovens estão perdidos. Podem se distanciar socialmente, adoecer e até cometer suicídio, como está ocorrendo. Com a falta de rezadores, não tem como saber — resume.
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Patrocínio estatal
A saída para melhorar a situação, diz Okaju, é um encontro de jovens com pajés e rezadores de outras aldeias. Cada rezador tem um dom e, para ajudar os jovens, é preciso reunir vários deles. Como geralmente são mais idosos, o encontro só deve ocorrer quando as condições da pandemia de Covid-19 permitirem.
O promotor Olympio de Sá Sotto Maior Neto, coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos do Paraná, lembra que a expulsão dos indígenas de suas terras foi um movimento patrocinado pelos governos desde a década de 50.
Um acordo entre a União, o governo do Paraná e a Funai promoveu a expropriação das terras ocupadas por diversos povos, que acabaram sendo juntados e colocados em espaços exíguos, sem respeito à cultura de cada um. Outros foram dizimados.
A Comissão da Verdade do Paraná relatou que o povo Xetá foi expulso de suas terras para dar lugar a uma companhia de desenvolvimento privada. Sotto Maior Neto conta que eram cerca de 300 pessoas. Foram colocadas em caminhões e não há registro do destino. Apenas oito sobreviventes dessa população foram localizados no Paraná.
— Eles estão sofrendo o abalo pela forma com que estão sendo atacados. É uma desumanidade estrutural, como se não fossem sujeitos da dignidade da pessoa humana. O presidente disse que não demarcaria um centímetro de terra indígena, e diversos projetos no Legislativo tentam eliminar direitos já reconhecidos — diz o promotor.
Liebgott afirma que lideranças indígenas relatam ainda aceleração da cultura ocidental sobre a cultura indígena, que atinge principalmente os mais jovens. E isso gera incertezas, falta de perspectivas.
— Eles têm como referência uma terra sem males e buscam em outra dimensão, uma existência mais segura — diz Liebgott.