Daniel Clowes vê sua vida pelo bizarro em ‘Monica’, épico recheado de seitas
Ilustração da HQ ‘Monica’, de Daniel Clowes Divulgação
O quadrinista Daniel Clowes diz que “Monica” é sua obra mais pessoal.
“Eu meio que estava tentando refletir sobre a minha infância através do filtro dessa personagem que vive uma infância muito semelhante à minha e chega ao mundo em meio ao caos”, diz Clowes, com voz grave e monocórdica de sua casa em Oakland, na Califórnia.
Clowes tem 62 anos e é um dos nomes mais celebrados das HQs mundiais. Seu trabalho mais famoso é “Ghost World”, originalmente publicado em 1997 e adaptado para o cinema em 2001. O longa do cineasta Terry Zwigoff protagonizado por Scarlett Johansson em início de carreira rendeu ao quadrinista uma indicação ao Oscar de melhor roteiro adaptado em 2002.
Também viraram filmes seus quadrinhos “Uma Escola de Arte Muito Louca”, de 2006 e com John Malkovich, e “Wilson”, de 2017 e com Woody Harrelson e Laura Dern no elenco.
“Estou escrevendo, por meio desses personagens, sobre a maneira como vejo o mundo. Não necessariamente com minhas opiniões, mas estou escrevendo sobre como o mundo me soa”, reflete o autor.
“A minha infância foi toda muito parecida com a da Monica. Eu sempre me senti muito sozinho e passando muito tempo dentro da minha própria cabeça. E nunca me senti confortável em contextos sociais. Nunca me senti confortável perto de pessoas particularmente sociáveis. Então tendo a escrever personagens que compartilham desse ponto de vista ou estou tentando imaginar como é não ser um deles”.
“Monica” é a primeira HQ de Clowes em seis anos, desde o lançamento da ficção científica “Paciência”, em 2017. Ele deu início ao álbum como uma coletânea de “histórias de gêneros distintos em sequência” inspiradas em sua infância misteriosa. O pai dele abandonou a família quando ele era pequeno após um conflito nunca esclarecido com sua mãe e ele acabou criado pelos avós.
Ele tinha a intenção de narrar uma história semelhante à dele a partir das singularidades das HQs de gênero que impactaram sua formação como leitor. Aí, sua mãe e seu irmão mais velho morreram e enterraram com eles qualquer chance de compreensão dos mistérios de sua infância.
“Todo mundo da minha família morreu”, ele conta. “Eu fui o único que sobrou e ninguém nunca me explicou nada sobre minha infância, e eu fiquei sem ninguém para perguntar. Então eu tive que tentar imaginar, ou preencher as lacunas, ou praticamente fazer o tipo de trabalho de detetive que Monica faz. Isso tudo para tentar entender o que aconteceu quando eu tinha dois anos. ‘Por que isso aconteceu?’. Foi uma espécie de jornada pessoal de autodescoberta”
O primeiro dos nove capítulos de “Monica” se propõe a ser uma HQ de guerra, com dois soldados norte-americanos em prontidão nas florestas do Vietnã. Aí vem uma sequência focada na vida romântica da mãe de Monica. Trechos seguintes passam por enredos de terror, ficção científica e fantasia.
Em meio a isso, Clowes subverte clichês desses gêneros e expectativas geradas por eles. Cabe ao leitor montar o quebra-cabeça em torno das origens da protagonista.
“Um gênero acabou se sobrepondo ao outro e foi se tornando uma coisa muito complexa, com os gêneros sendo quase apenas usados como uma forma de flexionar a história, da mesma forma como efeitos sonoros e trilhas são usados em um filme”.
estampou a capa dos principais jornais da época _O irmão que Clowes perdeu durante a pandemia de Covid-19 era 10 anos mais velho e fomentou a paixão do autor por quadrinhos. Os dois cresceram em Chicago sem muitas possibilidades de diversão além das HQs. Na época, os gibis de super-heróis ainda disputavam espaço com revistas especializadas em terror, romance, ficção científica e outros gêneros.
“Eu ficava apenas lendo, lendo quadrinhos todos os dias”, conta o autor. “Eu me tornei fluente naquele idioma. É quase como crescer com pais que falam uma língua diferente e você acaba assimilando. Então foi isso, algo que acabou compondo a forma como vejo o mundo”.
Clowes se tornou um dos expoentes do novo quadrinho americano do fim dos anos 1980 e início dos anos 1990. Ao lado de colegas como Charles Burns e Chris Ware, ele potencializou as experimentações autorais de precursores como Robert Crumb e Art Spiegelman.
Seus trabalhos mais recentes têm uma abordagem narrativa pragmática, mas as ambientações seguem tão bizarras quanto suas primeiras HQs.
Ele vê “Monica” como um retorno aos cenários macabros de seu primeiro trabalho longo, “Como Uma Luva de Ferro Moldada em Veludo”. Lançada em 1995, a HQ narra a saga conspiratória de um jovem em busca de sua ex-esposa após vê-la como protagonista de uma produção pornográfica.
“Quando comecei ‘Monica’, Donald Trump foi eleito presidente, aí veio a pandemia, as coisas enlouqueceram e eu realmente pensei que o meu livro mais condizente com a nossa época era ‘Como Uma Luva de Veludo'”, reflete o autor.
“‘Monica’ é, em parte, um retorno a esse livro, uma volta a certos temas, mas em vez de apresentá-los como absurdos ou uma caricatura da realidade, mostrando-os como falhas inevitáveis da humanidade”.
Já sobre o pragmatismo narrativo da obra, ele diz: “A história em si é muito complicada, densa e complexa e tem muitas coisas que eu gostaria que o leitor descobrisse em uma segunda, terceira ou quarta leituras. Para que isso funcione, tem que haver clareza absoluta. Não pode haver nada onde você fique confuso em relação às dinâmicas da história. Passei muito tempo tentando deixar a progressão visual, entre cada painel, a mais clara possível”.
Uma clareza voltada para uma melhor compreensão de Monica em relação ao seu passado e também da própria história de Clowes, que inclusive faz uma ponta na HQ.
“Todo livro é uma jornada pessoal de autodescoberta, até certo ponto, mas chego ao fim e faço mais um monte de perguntas que levam a um novo conjunto de perguntas. Nunca acontece de eu pensar ‘ok, já entendi, está tudo esclarecido’. O mistério só se aprofunda. Você adentra mais no túnel. E é aí que moram todas as coisas interessantes”.