Antigo hotel de luxo que barrou Garrincha e Elza Soares vira moradia popular no centro de SP
Faz quatro meses que ela se mudou para o imóvel com o filho de 15 anos, após longa espera. O apartamento fica no recém-inaugurado residencial Elza Soares, na rua Helvétia, em Santa Cecília. O prédio passou por uma reforma que durou cinco anos e hoje é 100% destinado a moradia popular.
“Antes eu gastava quase todo o meu dinheiro para pagar aluguel. Era um lugar minúsculo, que para entrar no banheiro tinha que virar de lado. Aqui a nossa vida já melhorou muito”, disse a cabeleireira, enquanto mostrava o banheiro novo, equipado com box, pia, vaso sanitário, tanque e máquina de lavar.
Desde que a reforma foi concluída, em dezembro passado, os novos moradores têm chegado aos poucos —93 famílias já se estabeleceram e outras 83 ainda aguardam liberação da Caixa Econômica Federal para receber as chaves.
Nesse período, os moradores viviam com medo de serem expulsos por uma reintegração de posse, disse o designer gráfico Alexandre Fester, 50. “A gente saía de casa para trabalhar e não sabia se no fim do dia teriam tirado todas as nossas coisas de lá” disse o morador, que hoje trabalha também na portaria do prédio.
Ele e a mulher Adriana, 48, foram os primeiros a se mudar logo após o término da reforma. “A gente veio para cá na mesma noite trazendo a mudança. Dormimos na boleia do caminhão aqui na rua, para descarregar as nossas coisas logo que o portão abrisse, às 8h da manhã”, disse a copeira hospitalar, que agora planeja estudar nutrição na universidade.
Entregue em dezembro de 2022, a reforma foi viabilizada após extensa negociação entre a FLM (Frente de Luta por Moradia), movimento que coordenava a ocupação, e a prefeitura de São Paulo, então proprietária do edifício.
No final de 2015, a administração municipal, à época sob gestão de Fernando Haddad (PT), abriu chamamento público para destinar o edifício a moradia popular, e o movimento social ganhou o direito de investir R$ 22 milhões na reforma e construção de novo bloco de apartamentos com financiamento da Caixa.
“A maioria dos moradores veio de décadas de luta em ocupações, pressionando para que o governo fizesse uma política pública para atender essa demanda por moradia. Dessa geração do Minha Casa Minha Vida aqui em São Paulo, o Lord foi um dos últimos contratos feitos com o nosso movimento”, disse o coordenador da FLM Osmar Borges.
O novo condomínio tem unidades de várias dimensões – desde quitinetes com 27m² a apartamentos de dois quartos com 55m². Morador do décimo andar, Francisco Monteiro, 65, observa da varanda espaçosa o movimento da rua das Palmeiras e do largo de Santa Cecília. “É uma vitória e um recomeço pra mim. A vida que eu não tive, agora eu vou ter”, disse o vendedor ambulante, que planeja viajar em breve para Pernambuco, onde nasceu, para visitar o irmão e os sobrinhos. “Continuo trabalhando mas também quero aproveitar. Faz 40 anos que não volto para lá”.
Inaugurado em 1958, o Lord Palace Hotel já foi um dos mais célebres da cidade. Por ficar a poucos metros do antigo endereço da TV Globo, o quatro estrelas ganhou fama de “hotel dos artistas”, já que recebia muitos atores e atrizes que iam gravar na emissora. Era ainda referência em hospedagem para delegações de clubes de futebol, antes de cair em decadência e finalmente encerrar as atividades em 2004.
Na nova fachada, uma ilustração de Elza Soares, que dá nome ao condomínio, chama a atenção de quem passa pela rua. O mural mostra a cantora ainda jovem segurando a chave do hotel em sua mão esquerda. Ao lado, a frase “nenhuma mulher sem casa”.
A homenagem não é por acaso e remete a um episódio ocorrido em 1964. Na ocasião, Elza e o companheiro, o jogador de futebol Garrincha, foram barrados na portaria do hotel e impedidos de se hospedar por serem negros.
“O que mais me chamou a atenção pela história da Elza foi o preconceito que ela vivenciou aqui. E nós, enquanto moradores da ocupação, também sofremos isso pela vizinhança. Ainda acontece, mas agora eles têm que nos respeitar”, disse a assistente social Rosângela Pereira, 38, que mora em um apartamento de dois quartos com o marido e os dois filhos.
Atualmente, de acordo com a Prefeitura de São Paulo, o déficit habitacional da cidade é estimado em 369 mil domicílios. Em março, o prefeito Ricardo Nunes (MDB) anunciou a compra de 38 mil unidades para abrigar a população de baixa renda que está na fila da Cohab-SP (Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo) ou recebe auxílio-aluguel. Um outro edital para compra de mais 20 mil unidades ainda será publicado.
Ainda por intermédio do programa, a administração municipal disse que estão em estudo propostas de intervenção em 10 edifícios do centro para transformá-los em habitação de interesse social. Na região, a Sehab (Secretaria Municipal de Habitação) monitora 48 prédios ocupados de forma irregular por famílias sem-teto.