Famílias sobrevivem comendo sobras de alimentos que separam do lixo

DOUGLAS GRAVAS E DANILO VERPA
FOLHA DE SÃO PAULO
SÃO PAULO – Lênin Campos Oliveira, 40, aproveita a experiência acumulada em anos servindo mesas em restaurantes e como auxiliar de cozinha para preparar um banquete improvisado para moradores em situação de rua e outras famílias que vão ao Mercado Municipal, no centro de São Paulo, em busca de alimentos prestes a serem descartados.

Peixe, carne, costela e pedaços de tomate e verduras se transformam rapidamente em picadinho, disponível para quem espera os carregadores vindo com alimentos que não servem mais para os vendedores e clientes, mas podem garantir almoço e jantar por mais alguns dias.

“Venho até aqui há anos, mas sinto que a quantidade de pessoas tem aumentado. O perfil também mudou, cada vez mais famílias, donas de casa, pessoas que vêm de longe buscar comida para preparar para os filhos que ficaram em casa. É triste, mas é a nossa história”, diz.

Lênin Oliveira prepara alimentos que pegou do Mercadão Municipal de São PauloLênin Oliveira prepara alimentos que pegou do Mercadão Municipal de São Paulo – Danilo Verpa – 18.out.21/Folhapress

As marcas dessa piora na vida dos brasileiros podem ser vistas, sobretudo, nas ruas das grandes cidades, seja nas imagens recentes de pessoas buscando alimentos em caminhões de lixo de Fortaleza ou nas famílias cariocas que percorrem as ruas em busca de um caminhão que transporta ossos e carcaças de animais.

A inflação pelo IPCA (Índice de Preços ao Consumidor -Amplo), considerada a inflação oficial, superou os 10,25% em 12 meses. No mesmo período, as carnes acumulam alta de 24,84%.

Com o aumento do valor do produto, supermercados passaram a reforçar a segurança para evitar o furto de carne. A loja em um bairro periférico de uma grande rede, por exemplo, dava bandejas vazias no açougue, para que o produto fosse entregue ao consumidor só depois do pagamento.

Levantamento da Rede Penssan (Rede Brasileira em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional) aponta que 19,1 milhões de brasileiros —o equivalente a 9% da população— passam fome por insegurança alimentar grave (mais de 24 horas sem ter o que comer).

Além disso, são 24,5 milhões os que não contam hoje com alimentos em quantidade suficiente, segundo pesquisa publicada no fim do ano passado.

No mundo, 118 milhões começaram a passar fome em 2020, segundo relatório de julho da FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura).​

A fome, que voltou ao cotidiano de milhões de famílias, no entanto, vai muito além dos números. Ela tem rosto, histórias de sobrevivência e a expectativa de que as coisas melhorem.

Maria Madalena da Silva segura restos de alimentos que pegou do descarte do Mercadão MunicipalMaria Madalena da Silva segura restos de alimentos que pegou do descarte do Mercadão Municipal – Danilo Verpa – 14.out.21/Folhapress

Um deles é o de Maria Madalena da Silva, 46. Desempregada desde o início da pandemia, ela chegou a trabalhar por cinco anos como separadora de materiais reciclados. Com comorbidades, teve de deixar o trabalho no início da crise sanitária e, desde então, depende de doações de alimentos e da busca por comida em locais como o Mercado Municipal.

“Quando o dinheiro acabou, fiquei dependendo do Bolsa Família e do auxílio emergencial, pois tenho um menino de nove anos. Quando o benefício passou de R$ 600 para pouco mais de R$ 300, as coisas apertaram. Tudo aumentou muito —a água subiu, a comida ficou um absurdo”, conta.

Com os seis moradores da casa sem emprego, ela não teve dúvida. De uma a duas vezes por semana, passou a ir de São Miguel Paulista (zona leste), onde vive, até o centro de São Paulo para tentar a sorte no descarte de alimentos do Mercadão.

“Segunda-feira é dia de peixe. Consigo pegar pedaços de carne, ossada, costela de porco. O que der para pegar, a gente pega e faço bicos, até para ter o dinheiro da passagem.”

Ela conta que, se dependesse do que ganha com os bicos, não teria como comprar frango ou carne suína para a família. Nunca mais comprou carne vermelha desde o início da pandemia.

“As contas estão atrasadas, o que nunca tinha acontecido com a gente. Só sei que vamos conseguir passar o mês quando aparece alguém para distribuir uma cesta básica”, afirma.

Apesar do aumento dos indicadores de insegurança alimentar no país, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse em uma live que alguns passam fome no Brasil, mas que, na média, todo mundo engordou desde a pandemia. Ele também relacionou a inflação de alimentos ao aumento do consumo.

“Olha, muitos brasileiros passam mal, sei disso. Alguns passam fome? Sim, passam fome. Mas a média dos que passaram a comer mais foi bem maior. Se você lembrar de quanto pesava no ano passado e quanto pesa agora, na média todo mundo engordou um pouco.”

Olha, muitos brasileiros passam mal, sei disso. Alguns passam fome? Sim, passam fome. Mas a média dos que passaram a comer mais foi bem maior. Se você lembrar de quanto pesava no ano passado e quanto pesa agora, na média todo mundo engordou um pouco
Jair Bolsonaro
presidente do Brasil

“Aqui em casa, a gente não engordou”, diz Francisca Maria da Silva, 58. “Passei a ir ao Mercadão atrás de peixe ou alguma proteína. Nunca me vi nessa situação, trabalhei toda a vida, fazia meus bicos para organizar a vida, mas na pandemia tudo ficou bagunçado. Na minha idade, também, procurar emprego virou um problema.”

As idas ao Mercado Municipal e feiras para pegar restos acabam ajudando a sustentar a família. Batata, tomate, manga e abacaxi, que iriam para o lixo, viraram objetos de disputa nesses lugares. No Mercadão, ela busca ossos para cozinhar e fazer pirão. O peixe que seria jogado fora vira o almoço e a janta do dia.

Francisca Maria da Silva, que vai até o centro de São Paulo, em busca de alimentos Francisca Maria da Silva, que vai até o centro de São Paulo, em busca de alimentos – Danilo Verpa – 14.out.21/Folhapress

Silva, que entregava panfletos na rua antes da pandemia, tinha de se virar com cerca de R$ 40 por dia, trabalhando principalmente aos sábados e domingos. Com a volta dos serviços, o trabalho de entrega de panfletos também está voltando, aos poucos.

“Às vezes, a gente só consegue um fim de semana por mês, não é sempre que tem. Recebo R$ 150 de auxílio emergencial, mas ele vai quase todo para o gás. Mas nem sempre temos o que cozinhar. Com meus bicos, pago o aluguel e às vezes fico devendo.”

Ela conta também que não consegue se aposentar pelo INSS e se vira com a ajuda de vizinhos e de amigos. “É uma humilhação e sinto que o governo não faz nada. A gente não quer restos, quer ter emprego para viver com dignidade”, resume.

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