No museu onde a memória dos cururueiros faz morada, seu Sebastião reencontra irmãos da viola de cocho

Fotos: Bruno Rezende

Paula Maciulevicius

Para além de qualquer edição do Festival América do Sul, quando a programação se finda, sempre um legado fica, e em 2023 não foi diferente. Na memória do povo pantaneiro, mais ainda daqueles nascidos quando Mato Grosso era um só, a história ficou eternizada ali: no reencontro de cururueiros de Ladário e Santo Antônio de Leverger.

Rua Afonso Pena, número 2046, bairro Almirante Tamandaré, Ladário, Mato Grosso do Sul. Passava das 16h quando os 10 cururueiros do Mato Grosso desceram da van, adentraram o endereço no penúltimo dia de Festival, e foram recebidos pelo anfitrião de Ladário, Sebastião de Souza Brandão.

Aos 79 anos, o único mestre cururueiro de Mato Grosso do Sul na ativa se juntou aos seus em uma recepção calorosa, emocionando quem presenciava a cena como testemunha da história.

Irmãos de viola de cocho, Sebastião e os cururueiros do Mato Grosso trocaram abraços, elogios às respectivas violas, e relembraram o passado. “Camarada, eu faz hora que quero você aqui. Que prazer você estar aqui na minha residência. Aqui é pequenininho, mas é nosso”, diz Sebastião ao mestre cururueiro de Mato Grosso, Alcides Ribeiro dos Santos.

“Ah! Com quem eu falo na internet é com esse rapaz aqui, e eu quero ouvir você tocando”, diz ao mais novinho de todos, José Rodolfo de Carvalho Almeida.

Embora esta tenha sido a primeira vez que se viam, a devoção ao cururu e às tradições uniu, mesmo, aqueles separados por gerações. “E esse senhor aqui não é parente de Vitalino, não?”, questiona seu Sebastião ao cumprimentar um a um dos cururueiros. “Sou eu mesmo”, responde. “Eita, rapaz! Muito prazer em conhecê-lo, olha…” e dali já se engata uma prosa.

Por serem da terra do pai de seu Sebastião, também mestre de viola de cocho, é fácil encontrar conhecidos que carregam traços de quem Sebastião conviveu num passado.

Em poucos minutos de conversa, de quebra o mestre do lado de cá se atenta para uma coisa. “Eu estou perdendo o meu sotaque, porque fica muito tempo sem ver, eu chego a perder o ritmo”, justifica.

Registrada no Livro dos Saberes em dezembro de 2004 como o 5º bem de natureza imaterial a ser eternizado pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), a viola de cocho é patrimônio imaterial brasileiro, e seus mestres, os detentores dos saberes, da vivência e da cultura pantaneira.

Reencontro

O encontro de pessoas e reencontro de histórias, cultura e tradições marca a inauguração oficial da Sala da Memória Mestre Sebastião Brandão, localizada na casa do mestre, o grande anfitrião deste Festival América do Sul.

Com receio de não conseguir falar de tanta emoção, seu Sebastião abre a cerimônia falando da emoção de ver quem ele tanto queria encontrar. “Vocês são para mim meus irmãos. Eu agradeço muito vocês terem vindo, e eu quero sentar num banquinho ali e ouvir vocês cantar, porque talvez eu não vou aguentar”, antecipa.

Para quem nasceu e cresceu tendo como identidade um só Mato Grosso, a divisão do Estado fica só na geografia.

“Dividiram o nosso estado de Mato Grosso. Virou Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, mas a nossa tradição, a nossa cultura, não. Isso não dividiu, e essa cultura nós não devemos deixar ninguém roubar de nós. A viola de cocho  é registrada como patrimônio imaterial nacional. Ela é do Brasil, mas ela mora na casa dela: Mato Grosso e Mato Grosso do Sul é a casa dela”, enfatiza.

Ao olhar a família do mestre Alcides, que já está na sexta geração de cururueiros, seu Sebastião narra a luta que tem travado para que do lado sul-mato-grossense, o cururu e a viola de cocho não fiquem só no passado.

“Eu perdi os meus companheiros, que Deus o tenha, e eu fiquei assim, sem parceiro para cantar. Venho lutando com o meu neto para deixar minha semente. Ele ainda não está bem lá, mas está chegando. Mas vai chegar”, profetiza o avô.

Sala da Memória

A inauguração não é apenas fazer o descerramento da placa perante autoridades. É quando se entrega, por completo, uma obra para a sociedade. Neste caso, a placa reconhece – como se precisasse – o local como espaço cultural, fruto de um projeto executado com fomento do FIC/MS (Fundo de Incentivo à Cultura) do Governo do Estado, investimento do bolso da família Brandão, muito suor e trabalho de toda uma equipe que enxerga e valoriza o patrimônio histórico de Mato Grosso do Sul.

“Nós, da gerência, enquanto Fundação de Cultura, este é um dos momentos mais emocionantes para a gente que trabalha com o patrimônio cultural. Este encontro, fazer a inauguração, todo o trabalho da nossa equipe, é um dos momentos mais emocionantes que nós temos”, agradeceu a gerente de Patrimônio Cultural da Fundação de Cultura do Estado, Melly Sena.

Representando os cururueiros de Mato Grosso, o mestre José Rodolfo de Carvalho Almeida agradeceu o convite, além de reconhecer a importância histórica do momento. Jovem, ele explica que hoje tem a missão de levar a viola de cocho adiante.

“Minha tia teve um papel importante nesse incentivo na minha infância de estar no cururu e estar nas rodas de siriri. Quero agradecer a todos vocês aqui de Corumbá pelo acolhimento, pela recepção maravilhosa que tiveram comigo, com os meus companheiros, e dizer que estamos à disposição. O que precisarem de nós, estamos bem ali, do outro lado da divisa, mas com o coração unido pelo mesmo objetivo e propósito, que é o de levar adiante a nossa tradição”. 

Superintendente do Iphan, João Henrique Santos, entregou uma homenagem aos cururueiros, um documento que declara que o Iphan tem ciência do notório saber e engajamento destes mestres nas manifestações culturais registradas como patrimônio cultural brasileiro.

“A gente sabe que as referências culturais não obedecem os limites geográficos, então a gente vai estar sempre tratando e cultuando a mesma cultura, a mesma memória e as mesmas referências que é o rio Paraguai que nos unem enquanto irmãos pantaneiros”.

 

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