Milton Gonçalves foi o primeiro diretor negro das telenovelas; profissionais relembram legado e multitalento do artista
Daniel Filho e Joel Zito Araújo comentaram a parceria com o ator, que morreu em 2022
Por Gshow
Na reportagem feita pelo gshow sobre o Dia da Consciência Negra, um nome muito levantado foi o de Milton Gonçalves. Destaque da dramaturgia e recipiente do Ordem do Mérito Cultural (OMC), o ator foi um dos poucos profissionais negros cuja carreira evoluiu em paralelo com a da teledramaturgia. Porém, um dos vários feitos da jornada de Milton ainda é pouco lembrado: também foi o primeiro diretor negro de telenovelas do Brasil.
Vítima de um AVC, aos 88 anos, em 2022, subiu aos palcos de teatro e surgiu nas telonas do cinema ainda na década de 1950; logo no início da de 1960, começou na televisão; em 1970, quando a carreira já era um mérito só por existir naquele período, Milton deu uma grande virada.
Sucesso estrondoso, a antológica Irmãos Coragem, de Janete Clair, marcou o início da dupla jornada profissional dele; diante das câmeras, interpretava o papel de Brás Canoeiro; atrás das lentes, comandava a direção do folhetim.
“Quando fui fazer Irmãos Coragem, ainda não existia o hábito de mais de um diretor. Mas inventei isso porque achava que podia dividir bem e convidei o Milton para ser diretor”, conta Daniel Filho, que estava à frente da novela. “Ele era um excelente ator, um homem estudioso da sua profissão e com vontade de dirigir.”
A repercussão do projeto parou o país. No futebol, Pelé reafirmava o legado, ao trazer para o Brasil o tricampeonato na Copa do Mundo de 1970. Mesmo assim, o torneio de futebol ficou aquém da audiência da novela. Com a mão de Milton entre os pilares do sucesso, a trama foi a primeira do gênero a ultrapassar os 85% no Ibope.
“E ele fez um trabalho maravilhoso! Irmãos Coragem teve 328 capítulos. Acredito que, pelo menos, 150 capítulos foram dirigidos pelo Milton, porque tive que sair para fazer a próxima e voltei no final”, continua Daniel Filho que ainda revela um bastidor sobre o personagem.
Na novela Passo dos Ventos, de 1968, Janete Clair apresentou um casal interracial, protagonizado pela atriz Djenane Machado e o ator negro Jorge Coutinho, algo que despertou rejeição extrema do público. Dois anos depois, ao escrever Irmãos Coragem, diretor e autora pensaram em uma abordagem diferente para o tema.
“Propus à Janete que se tirasse a conotação sexual e colocasse como um casal interracial já assentado e de uma situação econômica subalterna, para ver como funcionava. Na novela, o Milton era casado com a Suzana Faini e reproduziam o comportamento de qualquer casal. (Deu) Zero problema”, relembra Daniel.
Segundo ele, na trama, a autora ainda exerceu mais um mecanismo de dramaturgia para que o público torcesse pelos dois. Na história, Cema, personagem de Suzana, era estuprada, e engravidava no mesmo período. Então, era posta a dúvida se o pai do bebê era o marido negro ou o estuprador branco.
“E foi pela primeira vez na história do Brasil que o público torceu para que uma mulher branca tivesse um filho negro”, conta Daniel. E o filho era, de fato, do personagem de Milton.
Na novela seguinte na faixa do horário, O Homem que Deve Morrer, escrita pela mesma autora, Daniel Filho levou novamente Milton para ser o codiretor da trama; em 1976, repetiu a função no sucesso nacional e internacional que foi Escrava Isaura, mas, desta vez, sob a tutela de Herval Rossano.
“Uma das formas que o racismo age na sociedade brasileira é pelo silêncio da cor do protagonismo negro”, explica o diretor, documentarista e acadêmico Joel Zito Araújo, que, atualmente, investiga o tema na série “A Ética do Silêncio”, do Canal Curta!. “As grandes figuras de grande protagonismo, quando são negras, são inviabilizadas”, argumenta. “E o Milton sofreu isso.”
Quando Joel Zito dirigiu o primeiro longa-metragem de ficção também recorreu a Milton, dando ao ator o posto de um dos protagonistas do filme “A Filhas do Vento”, cujo elenco ainda era liderado por Ruth de Souza, Léa Garcia e Taís Araujo. O resultado foi bem-sucedido. Além da amizade com o diretor, o personagem Zé das Bicicletas rendeu a ele o Kikito de Melhor Ator, Festival de Gramado de 2004.
“Além de grande ator e um homem muito inteligente, fez isso (dirigir uma novela) porque conquistou esse lugar nas peças, telenovelas e filmes que fez. Mas, quando se está atrás das câmeras, tem uma facilidade de invisibilidade”, comenta Joel Zito. “E acho que o Milton foi vítima desse tipo de coisa. E aquilo que não podiam apagar era a força dele diante das telas.”