O sonho do diretor Peter Jackson, vencedor de três Oscars por seu trabalho na grandiosa trilogia “O Senhor dos Anéis”, era o mesmo de praticamente qualquer beatlemaníaco: poder entrar numa máquina do tempo e viajar diretamente para a Inglaterra no fim da década de 1960, mais precisamente para um estúdio ou sala de ensaio onde Paul McCartney, John Lennon, George Harrison e Ringo Starr estivessem trabalhando.

— Eu ficaria quieto num canto, só um dia, apenas observando — garante o neozelandês Jackson, de 60 anos, em coletiva de imprensa para divulgar “The Beatles: Get back”, uma igualmente grandiosa (e de exuberância técnica) série documental sobre o grupo em três episódios, que estreiam quinta-feira, sexta e sábado no streaming Disney+.

Não que a trajetória meteórica e explosiva do Fab Four não tenha sido exaustivamente documentada em filmes: espécie de primeira (e mais influente) boyband da história da música, os Beatles eram filmados por todos os cantos. Filmes como “Os reis do iê-iê-iê” (1964), “Help!” (1965) e “Submarino amarelo” (1968), porém, eram extensamente editados, usados para fins promocionais. O que Peter Jackson queria — e quase todos nós, praticamente — era saber como foi, à vera, vícios e virtudes, tapas e beijos, para além de mitos e fofocas, e, assim, desconstruir alguns deles.

‘The Beatles: Get back:’Último show teve frio, vento e fim do sonho num terraço de Londres

A sorte é que estamos falando de um dos maiores diretores de cinema vivos, que conheceu o fã Paul McCartney na première de “O Senhor dos Anéis: As duas torres” em 2002 e conquistou não só a benção de McCartney e Ringo Starr, mas também das viúvas de Lennon e Harrison (Yoko Ono e Olivia Harrison). E, a partir disso, mergulhou na máquina do tempo possível para então contar da melhor maneira aos espectadores o que viu. Para isso, convenceu a Disney, com um empurrãozinho dos adiamentos causados pela pandemia, a transformar um longa-metragem de cerca de duas horas num documentário mais de três vezes maior.

Sem restrições

O enredo geral de “Get back” já é conhecido, de alguma forma. O filme se passa em janeiro de 1969, quando os Beatles estavam num estúdio cinematográfico no oeste de Londres ensaiando canções para o álbum “Let it be”. A missão, basicamente, era compor e ensaiar 14 canções em duas semanas, e logo depois tocar este repertório ao vivo em algum local diferente. Todo o processo foi exaustivamente registrado à época pelo diretor Michael Lindsay-Hogg e editado em 80 minutos no documentário “Let it be”. O filme só foi estrear em maio de 1970, um mês depois de os Beatles se separarem. Desde então, “Let it be” — e aquele período como um todo, que culminou na histórica performance no terraço do prédio da Apple Corps — era entendido como um retrato melancólico, visualmente sombrio e cheio de ressentimentos que culminaram no fim lamentado até hoje.

— “Get back” não mostra a separação dos Beatles, mas um momento singular na história que você pode considerar o começo do fim — adianta Jackson. — Em “Let it be”, Paul e John influenciaram muito na edição de Lindsay-Hogg. Eu temia que fizessem o mesmo comigo, mas eu não recebi qualquer orientação deles [McCartney, Starr, Ono e Harrison são produtores do filme]. Por exemplo, em 1969 ele não pôde mostrar George deixando a banda e sumindo por alguns dias. Ele filmou aquilo e tem cenas de George anunciando que estava fora. Michael foi impedido. Nós, não. Não tivemos restrições.

Jackson e sua equipe se sentaram diante de 57 horas de imagens digitalizadas e mais de 90 horas de áudio gravados em 460 fitas — que chegaram a ser roubadas em 1970, mas recuperadas quase na totalidade pela Interpol desde a década de 1990. E o diretor organizou a história em ordem cronológica, mostrando trechos de cada um dos 22 dias de ensaios e gravações, além do concerto do terraço.

Pôster do documentário 'The Beatles: Get back' Foto: ReproduçãoPôster do documentário ‘The Beatles: Get back’ Foto: Reprodução

 

Tecnologia de ponta

De Wellington, Peter Jackson passou praticamente os últimos quatro anos mergulhado nesse material valioso. Nos últimos dois, por conta do coronavírus, se trancou com o montador Jabez Olssen numa suíte de edição (“estávamos trancados com os Beatles nos ajudando a superar a pandemia. Eles me fazem rir”), e trocou ideias com Michael Lindsay-Hogg. “Get back” utiliza as mesmas tecnologias de realce de filmagens de última geração que Jackson usou pela primeira vez no documentário “Eles não envelhecerão” (2018) — que traz imagens inéditas em alta definição da Primeira Guerra Mundial — e, posteriormente, na restauração da trilogia “O Senhor dos Anéis”.

O resultado surpreendeu os fãs e mobilizou as redes sociais desde o lançamento do primeiro trailer, há um mês: a qualidade de áudio e vídeo nos faz duvidar que aquilo foi filmado há mais de 50 anos, mas quem está na tela são os quatro Beatles numa fase em que conciliam maturação artística, após 11 álbuns lançados, e um relacionamento saturado de banda que viveu intensamente o estrelato, como nenhuma outra até então, por uma década.

— Não há vilões, nem mocinhos no filme. É apenas uma história humana — resumiu Jackson. — Por anos, eu vi entrevistas de Glyn Johns (produtor) e Michael, que estavam lá, dizendo não entender por que as pessoas tinham essa impressão negativa daquelas sessões. Eles lembravam de rir e gargalhar o dia todo. E eles estavam certos o tempo todo.

Paul mandão?

“Get back”, por exemplo, tenta equilibrar uma visão de que Paul McCartney era mandão demais. O filme, exemplifica Jackson, mostra um dia gelado no estúdio em que os quatro Beatles estão lá para ensaiar para o show que fariam 18 dias depois. Paul liderava a sessão porque queria que aquilo funcionasse, mais do que os outros três. Dá para sentir nas imagens que Paul se vê arrastando um trio lento atrás dele.

— Parte do problema de Paul é ele ser ambicioso demais. É uma espécie de maluco, realmente. Com aquela meta de gravação, eles criaram um problema para si, e é Paul quem está arcando com o peso disso. Mas ele não está sendo autoritário, está mais falando “pessoal, nós temos só mais oito dias para compor e fizemos apenas três músicas”. Incentivando. Ele é o mais responsável ali — diz o diretor.

A presença de Yoko

E tem a história da presença de Yoko Ono no estúdio. Ela, de fato, está o tempo todo ao lado de John Lennon, que por vezes se mostra disperso e petulante nas filmagens, isolado com a parceira. O músico estava usando heroína esporadicamente na época, e, excessivamente apaixonado, ficava na defensiva sobre a presença de Yoko. Ele chega a falar “eu sacrificaria todos vocês por ela”, para McCartney. Mas a artista plástica japonesa, por sua vez, aparece na dela, sem atrapalhar o processo produtivo — vale lembrar que, apesar dos percalços, o álbum “Let it be” ficaria pronto e, além de ter faixas históricas do rock como “Get back”, “Let it be” e “The long and winding road”, aquelas sessões ainda geraram o rascunho de faixas de “Abbey Road” (que foi gravado depois, mas lançado antes), como “Carry that weight”, “Octopus’s Garden” e “Something”.

Paul McCartney, Ringo Starr, George Harrison e John Lennon (com Yoko Ono ao lado) durante um dos ensaios em 1969 Foto: Divulgação/Apple CorpsPaul McCartney, Ringo Starr, George Harrison e John Lennon (com Yoko Ono ao lado) durante um dos ensaios em 1969 Foto: Divulgação/Apple Corps

— Quando você é famoso como os Beatles eram, tudo o que você faz vira um mito. Para uns, Yoko não estava lá, para outros estava separando a banda. A verdade tem muito mais nuances. Ela está lá porque eles estavam apaixonados, John saía para trabalhar e não queria ficar sem ela. Talvez os outros preferissem que ela não estivesse lá, mas eles amam John e aceitam. Mas o principal é saber que Yoko não interfere no que eles faziam, de jeito nenhum — reforça Jackson.

O grande mito que “Get back” quer desconstruir, porém, é mais direto que isso: entender que aquele período imersivo no estúdio pode ter sido conturbado, mas não “o prego final no caixão dos Beatles”. Que havia humor, dança, crianças, música e respeito.

“Foi um ótimo período”, diz McCartney num comunicado divulgado pela Disney. “Nós éramos uma banda muito boa, e ser documentado dessa forma é muito íntimo, e isso é o que há de bom nisso. Você tem as músicas, o show, as conversas, mas principalmente você está vendo e ouvindo esses caras de forma muito íntima”.